Foi a primeira suspeita do processo: Sócrates teria acumulado dinheiro por supostos favores prestados ao grupo Lena quando ainda era primeiro-ministro. Os investigadores apoiavam-se no facto de Santos Silva ter sido administrador do grupo, nos negócios conquistados pela construtora fora do País com o apoio de Sócrates (como as casas da Venezuela) e no facto de o grupo ter sido o maior fornecedor do Estado. Entram para as suspeitas o concurso do TGV, as concessões rodoviárias, ou a Parque Escolar. Ao todo, o grupo Lena terá conseguido mais de 175 milhões de euros em obras públicas quando Sócrates era primeiro-ministro.
As escutas direcionadas aos telefones de Sócrates desde 2013 terão permitido perceber que, mesmo depois de sair do governo, Sócrates terá exercido influências em prol do grupo. Ao telefone terá chegado a defender que eram “amigos” com as mesmas preferências partidárias. A investigação terá ainda conseguido acompanhar em tempo real um encontro em Nova Iorque com o vice-presidente de Angola, no qual também terão estado presentes Santos Silva e Joaquim Barroca, patrão do grupo Lena. No primeiro contacto telefónico com Manuel Vicente, Sócrates terá pedido se o dirigente angolano poderia fazer o favor de receber “umas pessoas amigas” a quem deveria “umas atenções”.
Sócrates terá ainda agilizado contactos entre Santos Silva e o primeiro-ministro da Argélia (país onde o grupo Lena queria construir cem mil casas) e facilitado o reembolso de faturas emitidas por empresas do grupo, que estaria para receber há um ano 100 milhões de dólares do estado venezuelano e 80 milhões de Angola. O Ministério Público entende estar perante indícios fortes de tráfico de influência. As respostas da Suíça às cartas rogatórias trouxeram para a história um novo dado que liga as suspeitas ao grupo Lena: contas de Joaquim Barroca terão servido de ponto de passagem dos €23 milhões.
VALE DO LOBO
Ao que a VISÃO apurou, há um raciocínio que atravessará as 21 954 páginas do processo Marquês: assim como defende que se fossem empréstimos de Santos Silva não haveria pudor em usar a palavra ‘dinheiro’, o Ministério Público também argumenta que se o esquema de circulação de capitais fosse legítimo não precisaria de ser tão elaborado, nem Sócrates nem Santos Silva precisariam de forjar ou ocultar provas. Nesta história há uma tentativa de aplicar os milhões num fundo imobiliário, um computador que terá ido parar a outro apartamento do prédio onde vivia Sócrates e obras de arte que terão saído da casa do ex-primeiro-ministro para o apartamento da empregada da mãe de Sócrates, Rita (que também terá sido chamada a testemunhar no processo).
Há ainda uma circulação complexa de dinheiro entre Portugal e a Suíça, passando por sociedades offshore, que terá começado ainda em 2007, e ter-se-á prolongado até que ao abrigo do RERT o regime que permite repatriar capitais por uma taxa reduzida €23 milhões terão sido depositados, primeiro numa conta no BESI e depois em duas contas do BES, em nome de Santos Silva. O circuito passa por figuras como Helder Bataglia, suspeito no Monte Branco e um dos arguidos do processo dos submarinos; Armando Vara, condenado por tráfico de influência no caso Face Oculta, e José Paulo Pinto de Sousa, o primo de Sócrates que foi suspeito no processo da Câmara da Amadora e no Freeport. Mas o processo no seu todo implica ainda outras duas personalidades ligadas a processos judiciais: há escutas a Rui Pedro Soares, o homem da PT que foi absolvido no processo Tagus Park, e outras que apanham como interlocutor António Morais, visado no caso Cova da Beira e ex-professor de Sócrates na Independente.
Quase todo o dinheiro que Santos Silva recebeu na Suíça vinha de Helder Bataglia. Pelo meio apenas dois milhões de um misterioso holandês e um milhão que terá ido parar à conta de uma offshore em nome de Bárbara Vara, filha de Armando Vara. Os investigadores tiveram de responder à pergunta: o que têm os três em comum? O holandês Jeroen Van Dooren tinha uma casa em Vale do Lobo, projeto de que Bataglia era acionista e que foi financiado pela CGD quando Vara estava no banco público. Foi essa resposta que a investigação suspeita não ser mera coincidência que dirigiu o inquérito para um novo alvo: Vale do Lobo, com suspeitas de que Sócrates terá tomado alguma decisão em benefício do resort de luxo.
Com as transferências a envolver Bataglia e o primo de Sócrates, os investigadores terão iniciado uma terceira frente de investigação: os negócios familiares [ver caixa sobre Bataglia]. A dispersão, defenderá quem desde a primeira hora investiga o caso, explica-se pela dificuldade em conseguir responder à pergunta: quem pagou e a troco de quê? É esta a maior fragilidade do inquérito. Ainda assim, há quem já tenha analisado a prova recolhida e entenda que os indícios já serão suficientes para deduzir uma acusação contra Sócrates, não sendo necessária a chamada prova direta. Em julho de 2015, os desembargadores Fernando Estrela e Guilherme Castanheira entenderam estar perante indícios “intensos” de fraude fiscal e branqueamento e outros não tão fortes, mas suficientes, de corrupção. “Não acreditamos minimamente no argumento da amizade”, remataram, acrescentando, num apontamento irónico, que Sócrates terá voltado ao País quando já sabia que iria ser detido em Lisboa porque não conseguiria sobreviver sem a generosidade e os fundos das contas do amigo. Sócrates tem batido nas mesmas teclas em que carregou no segundo interrogatório: nunca terá “contado o dinheiro do amigo”, que é uma pessoa “decente”, e está a ser perseguido por um Ministério Público com “visão de túnel”.