Para quem conhece o modo de funcionar do Avante! teria percebido, na última quinta, 5, dia de saída do jornal, que o acordo com o PS já não estava na fase de discutir a ementa, mas sim praticamente cozinhado. António Costa reunira na noite anterior com a direção comunista na Soeiro Pereira Gomes e saíra sorridente. Não se sabe se foi o caso, mas àquela hora, é normal, em casos extremos, o editorial do semanário esperar para entrar em página, já com quase toda a edição fechada. “Numa situação política desta sensibilidade, deve ter sido visto e revisto várias vezes pelo Jerónimo e pelo Francisco Lopes antes de estar fechado”, referem as fontes da VISÃO que conhecem o funcionamento do jornal. No dia seguinte, o editorial do Avante! destacava então o facto de haver condições para a entrada em funções de um Executivo do PS “para a adoção de uma política que assegure uma solução duradoura. Nenhuma razão política e institucional pode ser invocada para questionar essa solução governativa”, escrevia-se. No texto, estava já o acordo de legislatura com rabo de fora. “Se o assunto não fosse pacífico, aquele editorial nunca seria publicado”, garantem fontes conhecedoras do funcionamento do semanário do PCP.
Para o jornal comunista, há uma semana já não havia dúvidas de que o novo quadro parlamentar saído das últimas eleições permitiria “concretizar um conjunto de medidas e soluções que deem resposta aos interesses dos trabalhadores e do povo”. Entre a utopia e a realidade, os comunistas assumiam, nas páginas da publicação, o desafio de enfrentar o pragmatismo do momento. O novo quadro parlamentar, escrevia-se, “permitiria ir tão longe quanto for a disposição de cada força política que a compõe para suportar o caminho da reposição de salários e rendimentos, da devolução de direitos, do reforço do acesso à saúde, à educação e à segurança social, do apoio às pequenas e médias empresas, aos reformados e aos jovens”.
Como se chegara aqui?
Já durante a fase final da campanha eleitoral da CDU, Jerónimo de Sousa havia dado mostras de poder lançar a rede ao PS. Mas a pressão maior veio das bases e da área sindical. “Os militantes do PCP sabem bem o que foram estes quatro anos, os direitos que perderam. Muitos não perdoariam que se desperdiçasse esta oportunidade”, explica quem, nas estruturas sindicais, mantém vínculos com o partido. O processo interno foi mais fácil do que se esperava, ainda que com algumas tensões. “Uma parte dos quadros dirigentes foi educada a atacar contra o PS e qualquer negociação à esquerda seria sempre difícil. Já o tinha sido com Jorge Sampaio, em 1989, para a Câmara de Lisboa”, recorda quem participou nesse processo, apesar de, à época, a primeira proposta de coligação ter sido feita pelo PCP e inicialmente recusada pelos socialistas.
Desta vez, além do próprio secretário-geral – que tem a seu cargo a relação do PCP com o lado exterior das “paredes de vidro” – o líder parlamentar João Oliveira, o líder da CGTP Arménio Carlos, o deputado António Filipe e o antigo parlamentar Agostinho Lopes terão sido influentes na manutenção de pontes com os socialistas e no convencimento dos camaradas mais avessos a este acordo, sobretudo oriundos da chamada “carne da perna” do PCP: as organizações e quadros, setor controlado por Francisco Lopes.
“As críticas públicas ao PS nunca impediram, porém, que se fossem mantendo contactos oficiosos entre os dois partidos”, garante quem, internamente, acompanhou estes processos. Com “fina inteligência orgânica” e “um instinto de sobrevivência muito apurado”, segundo antigos dirigentes, o PCP “sabe ler sempre o pragmatismo do momento”. E de uma vez por todas, terá sido o caso.
O QUE DIZ O EX-PCP DOMINGOS LOPES
“Ai de quem atirar a primeira pedra…”
Foi um histórico do PCP, até abandonar o partido em 2009, após 40 anos de militância. Trabalhou com Álvaro Cunhal nos governos provisórios e agora pede à esquerda que responda ao País com “patriotismo e honra”.
Quando abandonou o PCP, a 7 de setembro de 2009, Domingos Lopes escreveu uma longuíssima carta à direção do partido justificando a sua decisão. Nela incluía perguntas que, a esta distância, parecem premonitórias: “PCP e BE não chegam para formar governo. É ou não preciso algo mais para esta rutura? Dentro do PS e do seu eleitorado não é possível vislumbrar atores sociais que possam vir a dar corpo a uma maioria que rompa com este ciclo?”, questionava. Hoje, à beira de ver nascer um governo do PS apoiado pelo Bloco e ex-camaradas de partido, o antigo membro do gabinete do ministro Álvaro Cunhal até ao VI Governo Provisório considera estar-se perante um momento onde, à esquerda, não são admissíveis falhanços. “Do que se trata é de mostrar que há a possibilidade de parar o empobrecimento”, refere. “Se Costa, Catarina e Jerónimo não forem capazes de o demonstrar governando, não vão tão cedo ter outra oportunidade», assinala o ex-dirigente do PCP à VISÃO.
Domingos Lopes não ignora o facto de as dificuldades serem “enormes”. Foram-no, de resto, “quando o PCP esteve no governo com o PPD, PS, Spínola, Mário Soares, Sá Carneiro e Magalhães Mota”, recorda. No momento, admite, existem também pressões e ameaças, algumas vindas de empresários “muito liberais desde que o Estado os proteja”. Mas a grande responsabilidade será das três forças que mudaram a História. “Nem o PS vai dar o abraço de urso ao PCP e ao BE, nem o PS vai ser chamuscado na fogueira do Governo porque, se o for, todos se vão queimar a sério”, crê. “Salvo todos os imprevistos que fazem da política a sua essência, ai de quem atirar a primeira pedra”, avisa. O desafio é, pois, de alto risco. “Que PS, PCP e BE saibam que têm nas mãos os destinos do País, não por meses, mas por muitos anos. Ou governam bem ou tão cedo não chegam lá”, reconhece Domingos Lopes. Para este advogado, impõe-se, pois, uma única receita para o sucesso desta solução governativa: “Patriotismo e honra no cumprimento dos compromissos”.