O mercado de Wuhan pode não ser o primeiro lugar onde o vírus infetou humanos; há dados que indicam ter havido doentes com sintomas compatíveis com a Covid-19 nas primeiras semanas de dezembro ou mesmo final de novembro; e há ainda suspeita de casos nesse momento inicial em outros mercados, em outras zonas do país. Eis as principais conclusões da missão de investigação que a Organização Mundial da Saúde conduz na China sobre os casos iniciais da pandemia. Mas se foi, entretanto, descartada a hipótese de ter havido um acidente laboratorial, já o animal que serviu de intermediário entre o coronavírus e o ser humano continua por identificar.
“Sabemos que acidentes acontecem e há exemplos disso em outros laboratórios no mundo. Daí termos visitado várias instituições do género na cidade de Wuhan, em especial o Instituto de Virologia. Mas, depois de entrevistar quem lá trabalha e avaliar o seu programa de monitorização, não foi identificado nenhuma manipulação com vírus desta família, revelando-se pouco provável que possa ter acontecido”, sublinhou Peter Embarek, um dos cientistas que integra a missão da OMS na China, na conferência de imprensa dada esta manhã a partir da cidade chinesa de Wuhan.
Mas há ainda muitas mais pontas soltas. “Não sabemos bem qual o papel do mercado da cidade na propagação do coronavírus. Apenas que foi identificado em pessoas que vendiam e frequentavam o local. Podemos dizer que é muito provável que possa ter acontecido ali, mas não é a única possibilidade”, assegurou ainda aquele especialista, ao revelar que “o coronavírus foi igualmente identificado em outros mercados, sem ligação àquele lugar em particular”. Agora, insiste, é preciso compreender como foi introduzido ali: “se foi por uma pessoa, vendedor ou visitante, ou se por algum dos produtos ali à venda”. E não descartaram ainda a hipótese de ter sido libertado por produtos congelados, já que “sabemos que havia ali algumas espécies suscetíveis a este tipo de vírus”.
Ao longo de mais de duas horas, os especialistas da OMS que estão na China para tentar determinar a origem do SARS CoV-2 explicaram que, apesar de tudo apontar para a população de morcegos, “que é o reservatório natural deste e outros coronavírus”, o facto de nenhum dos seus ecossistemas estar próximo da cidade levou-os a considerar “outro intermediário que poderá ter levado o vírus para a cidade”.
Para já, entre as quatro hipóteses em cima da mesa para determinar a origem da doença – incidente num laboratório, transmissão direta de reservatório animal para humano, introdução do vírus em outro animal próximo do homem, antes de saltar a barreira das espécies, e ainda possibilidade de transmissão a partir de comida congelada – as duas primeiras revelaram-se já muito pouco prováveis.
“Agora que identificados quem vendia aquele tipo de produtos, os fornecedores, as quintas onde são produzidos (alguns em outras zonas do país, outros de exportação) é preciso seguir essas pistas”, rematou o investigador, que esteve ainda acompanhado por pela virologista Marion Koopmans e pelos especialistas chineses que estão a acompanhar a missão. É preciso ainda, frisaram, “analisar mais amostras de animais, tanto na população de morcegos nas várias regiões da China como nos países vizinhos”. Já sobre a hipótese há algum tempo aventada sobre a deteção do coronavírus em outras regiões do mundo, como Itália, antes de dezembro de 2019, Koopmans considerou que os métodos usados para essa identificação não foram os mais corretos. “Mas o processo não está fechado. Toda a informação que possa esclarecer como tudo começou é bem-vinda”.
Uma missão há muito esperada
Foi em meados de janeiro que a missão da OMS chegou à China para investigar a origem do coronavírus responsável pela pandemia de Covid-19, detetado oficialmente pela primeira vez na cidade chinesa de Wuhan, no final de 2019.
Além da OMS, a missão integra especialistas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e da Organização Mundial de Saúde Animal, estando envolvidos cientistas dos Estados Unidos, Japão, Rússia, Reino Unido, Holanda, Dinamarca, Austrália, Vietname, Alemanha e Qatar.
No ano passado, tanto em fevereiro como em julho, outras duas equipas de especialistas tinham visitado a China com o mesmo objetivo, mas poucos pormenores foram então divulgados. Depois de meses de negociações, a OMS foi novamente autorizada a deslocar-se ao país para conduzir mais investigações que pudessem desvendar o mistério.
Depois de um momento de impasse inicial, devido à falta de aprovação de vistos de alguns dos especialistas que se preparavam para viajar para aquele país asiático, algo depois desmentido pela porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Hua Chunying, assegurando que tinha havido “um mal-entendido sobre as datas acordadas”.
Mas segundo muitos peritos envolvidos na negociação, citados pelos media internacionais, a China tem sido sempre muito sensível a qualquer sugestão “de que pudesse ter feito mais nas fases iniciais da pandemia para a deter”. Além disso, têm-se sucedido a alegações de que a China tem procurado moldar a narrativa sobre quando e onde a pandemia começou exatamente – mostrando que emergiu em múltiplas regiões, algo que o responsável da OMS Mike Ryan logo considerou “altamente especulativo”. Ainda assim, mal a equipa da OMS chegou ao país, a agência AFP dava conta da existência de pressão das autoridades chineses sobre as famílias das primeiras vítimas da Covid—19, para que não entrassem em contacto com os investigadores da OMS.