Apesar de vivermos rodeados de facilitismos algorítmicos desenhados para nos apresentar a realidade em memes de fácil compreensão, a política pode ser bem mais complexa e dinâmica do que aquela que nos é oferecida à distância de um like ou apresentada em dois minutos e meio de soundbite televisivo. E nem me refiro às fake news ou à propaganda de diversa origem, mas antes à constatação de que somos, muitas vezes, confrontados com visões parcelares do que nos é permitido observar. Neste sentido, se para alguns a votação favorável ao relatório Sargentini, e consequente ativação do Artigo 7.1 do Tratado da União Europeia, poderia significar um cartão avermelhado ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, e uma demonstração das reais capacidades das instituições europeias em travarem o avanço de governos populistas no seio da União, para os mais atentos a situação é bem mais grave, complexa e exige uma reflexão mais densa.
Em teoria, depois da legitimação do relatório Sargentini, na semana passada, em Estrasburgo, o Conselho Europeu deveria verificar se existe risco manifesto de violação grave, por parte do Governo da Hungria, dos valores fundamentais da União Europeia: respeito pela dignidade e pelos direitos humanos, liberdade e democracia pluralista, igualdade e não discriminação, e a manutenção do Estado de Direito. Se for aprovado por unanimidade, este processo pode, depois de outros passos processuais, levar à retirada do direito de voto da Hungria. Ora, esta é uma situação em que praticamente ninguém parece acreditar – nem em Budapeste nem em Bruxelas, de acordo com o que apurámos. Qualquer impacto, a haver, será sempre de índole política e simbólica, pois ninguém espera implicações de natureza económica, como o cancelamento dos milhões de investimento germânico na indústria automóvel ou a construção das centenas de milhares de metros quadrados, albergando mais escritórios para as grandes multinacionais com sede em Budapeste.
Tensão no PPE
Assim, que consequências pode ter esta votação? Segundo um alto-quadro do Partido Socialista húngaro, que solicitou anonimato, o principal efeito do relatório Sargentini será o de reforçar alguns elementos de propaganda interna já aplicados, e que vagueiam em torno da ideia de que a Hungria é hoje objeto de um ataque organizado por parte das elites europeias e dos políticos pró-imigração, apoiados pelo fundador da Central European University, George Soros. Esta opinião foi prontamente reforçada pela reação de Viktor Orbán, ao referir que a Hungria não irá ceder perante o que disse ser uma chantagem; que irá proteger as suas fronteiras, travar a imigração ilegal e, se necessário, fazer frente a Bruxelas. No mesmo sentido, Peter Szijjarto, ministro húngaro dos Negócios Estrangeiros, acrescentou que, em Estrasburgo, assistiu-se a uma verdadeira caça às bruxas, sem referir, no entanto, que em Budapeste a imprensa local publicou a lista de todos os eurodeputados que votaram a favor do relatório, classificando os de nacionalidade magiar como traidores da pátria.
O Governo de Orbán vai ainda questionar, formalmente, a legalidade do voto no Parlamento Europeu, devido à não contagem das abstenções para o apuramento da maioria necessária (um processo normal, mas tecnicamente não regulamentado). Desta forma, quem esperava poder continuar a assistir ao bom uso das formalidades institucionais da UE, para travar o avanço de regimes “populistas”, e à deslocação do palco principal do plenário parlamentar para o Conselho Europeu terá agora de esperar – o processo será inevitavelmente adiado.
O que convém a Orbán, no momento em que, na Hungria, uma parte da oposição defende que se deveria intensificar o combate ao chefe do Governo, baseada na ideia de que ele acabou de sofrer a sua primeira derrota visível no patamar europeu. A verdade é que não acredito que Orbán tenha falhado na sua estratégia. A prova disso é que ele continua a ser membro com plenos direitos do PPE. E já afirmou que nunca sairá do grupo pelo próprio pé, apesar de se encontrar a perder apoios de forma visível, como se apurou na tomada de posição austríaca (que me foi referido que apanhou Orbán de surpresa).
Sobre o PPE é preciso recordar que nem sempre Orbán foi bem recebido, em especial pelos deputados portugueses, holandeses e luxemburgueses (muito por força da atitude da ex-comissária Viviane Reding). Na altura, recordou-me o eurodeputado Paulo Rangel, aquando das primeiras consequências do seu regresso ao poder (2010), e quando estava em causa o ataque ao poder judicial, aos média e as prometidas transformações constitucionais, a estratégia do PPE foi sempre a de procurar manter Orbán dentro do grupo, pretendendo controlá-lo dessa forma. Era uma estratégia que contava com a maioria de apoio dentro do PPE e que resultou, ao início. A mudança de opinião dentro dos populares europeus deveu-se, ainda na opinião de Rangel, aos casos Lex CEU e à eleição de Donald Tusk para presidente do Conselho Europeu, ex-primeiro-ministro polaco, cujo partido pertence ao PPE. Tusk é arqui-inimigo de Jarosław Kaczyński, o verdadeiro líder do PiS (no Governo na Polónia) e personagem muito próxima de Orbán. Resta saber como irá o grupo reagir ao mais recente finca-pé húngaro.
Parece, em todo o caso, que Orbán já não joga exclusivamente neste tempo político e que a sua estratégia passa por aguentar o equilíbrio no parquet ondulante dos corredores de Bruxelas enquanto espera que as próximas eleições europeias legitimem nas urnas da União a sua visão maniqueísta da sociedade europeia: de um lado, os agentes de Soros pró-imigração, liberais, multiculturalistas, democratas; do outro, os anti-imigração, soberanistas e nacionalistas, que assume liderar. Na sua leitura, certamente que contará com o aumento do número de votos dos partidos de extrema-direita e, do ponto de vista institucional, com os efeitos parlamentares do Brexit, pois, com a saída dos conservadores britânicos, na prática, ficará o PiS polaco órfão de grupo político em Bruxelas, assim disponível para – com o Fidesz – construir à sua volta, com Le Pen, Salvini, Wilders, AfD, FPO e outros, um grupo competitivo no patamar europeu, com chefes de Governo e/ou em coligação governamental (Le Pen já anunciou que fará campanha europeia em conjunto com algumas destas forças). Assim, e se consideramos que as próximas eleições europeias se adivinham bastante competitivas, com perdas visíveis para PSE e PPE, sem clara maioria parlamentar ou bloco central maioritário em vista, num cenário com dois artigos 7º ativos (Hungria e Polónia), com o quadro comunitário de apoio 2020-2027 ainda em fase de negociações, o pós-Brexit e com as principais potências geopolíticas lideradas por Putin, Trump e Xi Jinping, rapidamente concluímos que, escondido na votação, que terminou aclamatória, se encontra muito do futuro da União. E não porque se conseguiu travar o populismo, mas antes porque deixámos escritas nas primeiras páginas dos jornais europeus, para todos lerem, as primeiras linhas da mais importante campanha eleitoral da história da integração europeia, já a serem trabalhadas pela extrema-direita europeia, com apoio e estratégia dos Estados Unidos da América (Steve Bannon esteve recentemente em Budapeste), financiamento e auxílio soft russos (o que não deixa de ser uma enorme ironia do pós-Guerra Fria) e o sentimento de estar a cavalgar os ventos da História.
Em todo o caso, Orbán tem razão quando refere que existe hoje uma extrema necessidade de se debater o futuro da Europa, nomeadamente nos seus preceitos políticos. O problema é que se este debate seguir os trâmites liberais e o historial europeu, ou seja, assumindo a necessidade de se construírem consensos em torno de ideias políticas diversas, irá encontrar do outro lado quem defenda uma visão leninista (mas não marxista) das estruturas de poder, cujo principal propósito da política não é governar por uma (ou duas) legislaturas mas interferir geracionalmente de modo a moldar, em todos os aspetos, a vida em sociedade. E quem não defende este pensamento é imediatamente considerado traidor, alvo a abater, persona non grata, e excluído da matriz do novo Estado que se pretende edificar. Para este lado da trincheira não existe debate, negociação ou acerto de posições. Todos pela nação, nada contra a nação, dizíamos no “tempo da outra senhora”. É neste sentido que Orbán se apresenta. Não como governante eleito, responsável pelo atual Governo húngaro, mas como porta-voz da sua nação. O ataque em Estrasburgo, a seu ver, não é contra o seu Governo, é contra toda a nação magiar. E qualquer voz ou assobio que o critiquem, por definição, terão de ser expostos e denunciados, e, depois, tratados.
Assalto às instituições públicas
Para entendermos melhor esta posição de Orbán, é necessário recuar ao último período da oposição do Fidesz (2002-2010), apesar de a substituição da sua matriz jovem e liberal ter ocorrido durante a governação de 1998 a 2002 (com a tentativa de ocupação do aparelho estatal, centralização da ação governativa e menosprezo pela oposição). Neste período de sombra, o Fidesz redesenhou a sua rede social de apoio através de uma apurada reconfiguração das relações entre o partido e um conjunto, seleto, de movimentos cívicos, nomeadamente de cariz rural, religioso e nacionalista. Para este fim, organizou centenas de eventos dispersos no território húngaro (no seu sentido lato, pois eram também consideradas as comunidades etnicamente húngaras nos países limítrofes), uma espécie de Estados Gerais que serviram para recrutar novas bases e quadros intermédios e idealizar uma renovada aliança com a sociedade civil, que permitisse operacionalizar cerca de três milhões de eleitores e garantir o triunfo eleitoral. Um projeto posto em ação, primeiro no mundo rural e nas pequenas cidades, e, depois, lentamente, em Budapeste (sem sucesso). Deste movimento saíram os fundamentos para o seu sistema de cooperação nacional, programa-base de intervenção total na sociedade.
Com esta base de apoio consolidada, quando Orbán regressou ao poder, em 2010, com maioria constitucional, não perdeu tempo a construir a adequada arquitetura legal que lhe permitia pôr em curso um plano bem elaborado de assalto às instituições públicas. E, assim, sem qualquer consulta popular ou processo de negociação, deu início a uma profunda reforma constitucional, clamando dotar a Hungria da sua primeira Constituição verdadeiramente livre e nacional(ista). O novo texto constitucional consagra uma matriz de governamentalização institucional conservadora, etnocêntrica e nacionalista. Instituições, como o Banco Nacional, o poder judicial e os média passaram a estar sob controlo (e tutela) do partido do Governo, transformações que, na opinião de muitos, destruíam o necessário equilíbrio de checks and balances, punham em causa o Estado de Direito e um conjunto de liberdades fundamentais, todos imperativos morais e formais nos sistemas democráticos com características europeias. Estas críticas, juntamente com uma profunda reforma do sistema eleitoral húngaro, foram devidamente apontadas, logo em 2012, no Parlamento Europeu, no relatório Tavares, cuja aprovação resultou num aviso às intenções de Orbán. Um primeiro cartão amarelo que poderia, se bem interpretado, ter motivado um recuo e uma adaptação do Governo húngaro, de forma a evitar os recentes desenvolvimentos, opinião partilhada por Rui Tavares (com quem falámos), que entende a morosidade do processo húngaro (quando comparado com o polaco) pelo facto de o Fidesz estar ainda resguardado pela sua família política europeia, o PPE, o que não acontece, por exemplo, com o PiS de Kaczyński.
No entanto, as ambições transformadoras de Orbán não se restringiram a aspetos formais e constitucionais. A sua aspiração de refundar a Hungria tem tido alcance totalitário, pois a sua intervenção faz-se sentir em todos os setores da sociedade, da política às artes e à academia, ao desporto ou à política de identidade e da memória. Neste sentido, dando corpo cultural ao seu novo sistema de cooperação nacional, o Governo tem substituído, desde 2010, vários diretores de museus, teatros ou da ópera, fundou novos institutos, com o intuito de revisitar conservadoramente a História, e interveio fortemente no setor da Educação. Com estes novos auspícios, deu-se início a uma extensa intervenção simbólica e programática. Os feriados e momentos de simbolismo coletivo foram reapropriados para servirem as novas narrativas, reinterpretadas de forma a consecutivamente apresentarem os húngaros como vítimas constantes da História, manietados por potências externas, sem responsabilidades em quaisquer acontecimentos traumáticos (como o holocausto ou o período comunista, por exemplo), linha interpretativa agora reforçada com a traição de Bruxelas. Também os livros escolares foram devidamente revistos, reforçando os benefícios evidentes da hegemonia etnocultural magiar, enfatizando, entre outros exemplos, os problemas de culturas diferentes coexistirem. Ou seja: o discurso que Orbán tem procurado levar a Bruxelas (e/ou Estrasburgo) da necessidade de refundação cristã da Europa já o tem aplicado em “casa”. E, no seu entendimento, ser cristão significa ser anti-imigração, contra o multiculturalismo ou políticas de identidade e atribuição de direitos iguais a todas e todos, independentemente da sua origem étnica, orientação sexual ou género.
Novos parceiros
No plano económico, os últimos governos Orbán serviram para construir a sua nova oligarquia, edificada essencialmente através do setor público, no (ab)uso dos fundos europeus, dos média e da finança. Muitos concursos a fundos europeus são ganhos sem concorrência, praticamente toda a TV e a rádio, todos os jornais nacionais e locais, bem como a publicidade estática se encontram nas mãos do Governo e seus acólitos. E se estas e outras questões de análise económica expõem, de forma convincente a excessiva dependência do Governo em relação ao investimento externo (nomeadamente da indústria automóvel e farmacêutica alemã), aos fundos estruturais da União Europeia, mais recentemente Orbán tem diversificado a sua rede de apoio, sobretudo na procura de grandes investidores para os seus projetos de obras públicas: a Rússia, na expansão das linhas de metro em Budapeste e do parque nuclear de Paks; e a China, na renovação da linha de comboio entre Budapeste e Belgrado.
Depois de ter consolidado o seu novo sistema político, de construir e posicionar a sua elite no topo da vida política, cultural e económica, e depois de garantir a reeleição de 2014 e 2018, Orbán assumiu uma atitude ainda mais agressiva, ao nível do discurso e da colocação narrativa, afirmando pretender construir um Estado iliberal, tomando como referentes o russo Putin e o turco Erdogan.
Procurando defender uma posição eurocêntrica, de matriz cristã e conservadora, exclusivista e assumidamente xenófoba, Orbán, na sua visão da Europa e do mundo, refletindo sobre o falhanço das políticas multiculturalistas e integradoras ao jeito da terceira via, tem vindo a defender a impossibilidade de coabitação pacífica entre civilizações tão diferentes, na sua leitura, como a cristã e a islâmica. Como solução alternativa propõe um regresso a um modelo europeu assente nos valores nativistas das nações, apresentando como exemplo o seu sistema de cooperação nacional. Reflexo desta atitude foi a reação musculada do Governo húngaro, aquando da crise dos refugiados de 2015. Na altura, como foi amplamente reportado, Orbán aproveitou a ocasião para reforçar a sua postura de defensor da fronteira europeia (como o haviam feito os magiares contra os turcos), pondo na rua todo o aparato estatal, demonstrando força e poder, enquanto a imprensa, a TV, a rádio e toda a propaganda visual bombardeavam diariamente com slogans antirrefugiados, anti-Bruxelas e anti-Soros, o que dizia ser uma invasão de contornos bíblicos patrocinada por forças estrangeiras.
A batalha que se avizinha
É este o mundo que Orbán construiu em sua casa na última década. Tem tido a sorte de se cruzar com o tema da migração e dos efeitos emotivos que as recentes vagas de refugiados têm gerado na opinião pública europeia. Complementarmente, o seu mapa iliberal de desmantelamento das instituições democráticas, dos sistemas de checks and balances, de reconfiguração das elites e de institucionalização sistémica de diversos mecanismos de corrupção têm servido como manual para quem se considere mandatado a liderar a nação para longe dos preceitos e legados do multiculturalismo pluralista, com o seu sistema de cooperação nacional húngaro a servir de inspiração doutrinária.
Pelo exposto, reforça-se a ideia de que o recentemente aprovado relatório Sargentini, mais do que nos fornecer (outro) um conjunto de evidências sobre a forma como um Estado dentro da União, paulatinamente, se afasta de todos os pontos elencados no seu conjunto de valores fundamentais, ou de nos passar a ideia de que é suficiente acreditar no efeito positivo do bom funcionamento das instituições da União, deve servir como um cartão amarelo de tons bem avermelhados, não a governos que se desliguem dos fundamentos essenciais da democracia e do Estado de Direito europeu, mas para as forças liberais que pretendem defendê-los e salvaguardá-los. Neste sentido, retomo a imagem das trincheiras, pois em altura de centenário comemorativo da Grande Guerra é imperativo entender, e assumir, que há um lado da opinião pública e política que tem dedicado os últimos anos a solidificar o seu lado da trincheira, enquanto os do outro lado pouco ou nada têm feito para se prepararem para a batalha que se adivinha, dispersos ou entretidos que se encontram. Não quero com isto sugerir que as diferentes forças políticas europeias de matriz liberal se fundam numa mélange insonsa, mas que se entenda que o senhor Orbán é hoje uma matriosca de diversas caras, alargando a cada dia o seu perigoso albergue (extremo) nativista. O futuro da União, assim como o nosso, disso depende.