“Uma estação de televisão que tem 50% de share vende tudo: sabonetes ou até o Presidente da República.” A frase de Emídio Rangel, em 1997, quando dirigia a SIC, ficou registada no documentário Esta Televisão é a Vossa, realizado por Mariana Otero para o canal Arte, e chocou grande parte dos opinadores do País. Não era soberba de Rangel: o poder esmagador da comunicação para grandes massas era já uma realidade palpável no nosso país, como havia sido no passado noutros pontos do planeta. Vinte anos depois, o chamado “quarto poder” detido pela comunicação social perdeu terreno e a capacidade de transformar a opinião pública transferiu-se grandemente para as redes sociais. Hoje, o seu nível de influência e de ingerência na vida de cada um de nós criou um mundo com contornos orwellianos, onde a história é reescrita à medida das conveniências de alguns poderosos e as notícias falsas conseguem sobrepor-se à realidade.
O poder desmesurado (e desregulado) das grandes empresas tecnológicas de Silicon Valley (vulgo GAFAM, de Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) instalou-se nas sociedades com uma avassaladora adesão popular na última década, mas sem o seu voto consciente. As questões da privacidade e da manipulação de informação começaram a ser discutidas de forma mais séria (nomeadamente na União Europeia, que tem vindo a estabelecer regras mais apertadas neste domínio), mas as revelações do programador informático Chris Wylie aos jornais The Guardian e The New York Times, a 18 de março, vieram confirmar os mais negros cenários sobre a utilização dos nossos dados detidos pelas redes sociais. Wylie assumiu ter sido o criador de um algoritmo que terá influenciado o referendo do Brexit e as eleições norte-americanas com base em informações retiradas do Facebook. Em parte incerta no Reino Unido, por motivos de segurança, este miúdo de 27 anos e cabelo cor-de-rosa está no centro do furacão que poderá arrasar o império de Mark Zuckerberg, se a empresa for considerada cúmplice das manobras obscuras de estrategas políticos para subverterem a democracia – mas também no centro da investigação à manipulação dos resultados eleitorais a favor de Donald Trump, com o apoio da Rússia.
Aprender com Obama
Como é que este canadiano, vítima de abuso sexual aos 6 anos, disléxico e com défice de atenção, que cresceu em gabinetes de psiquiatria e desistiu da escola aos 16 anos, conseguiu chegar ao ponto de – como afirma – decidir quem se sentaria na Sala Oval da Casa Branca? A chave estará numa palavra: psicometria. Mas para compreender o seu significado teremos de recuar uma década e seguir o percurso de Wylie, de olhos postos na evolução das redes sociais. Aos 17 anos, foi estagiar para o gabinete do líder da oposição canadiana. Era “o miúdo da internet”, tímido, anónimo, quase invisível. No ano seguinte, Barack Obama era eleito Presidente dos EUA e a utilização das redes sociais na campanha dos democratas foi crucial para a sua vitória. Chris Wylie foi enviado para Washington, onde aprendeu tudo o que havia para saber sobre a definição de perfis de utilizadores de redes sociais e a adaptação personalizada de mensagens políticas. Aos 19 anos, aprendeu programação informática de forma autodidata e, aos 20, decidiu estudar Direito. Conseguiu vaga na disputadíssima London School of Economics, em Londres. “Ele é uma das pessoas mais brilhantes que conheci”, explicou ao The Guardian um deputado que trabalhou com “o miúdo” nesses anos. “A política é como a máfia, nunca se consegue verdadeiramente sair…”, desabafou Wylie, explicando como acabou por aceitar trabalhar com os liberais-democratas, no Reino Unido, construindo bases de dados para campanhas direcionadas enquanto tirava a sua licenciatura. Nessa altura, o partido fazia já parte do governo de coligação de David Cameron e o seu líder, Nick Klegg, era vice-primeiro-ministro.
Ao mesmo tempo, dois investigadores da área da Psicologia avançavam, na Universidade de Cambridge, com uma forma diferente de estudar a personalidade dos utilizadores das redes sociais, quantificando-a. Michal Kosinski e David Stillwell criaram em 2007 um teste (myPersonality) que atribuía pontuações de acordo com cinco características principais: Abertura, Conscienciosidade, Extroversão, Agradabilidade e Neuroticismo (ou Instabilidade Emocional). Para realizarem o teste, 40% dos inquiridos permitiram o acesso a dados dos seus perfis no Facebook. O questionário tornou-se viral e, de repente, os investigadores tinham forma de cruzar as pontuações de milhões de inquéritos com os “gostos” dessas mesmas pessoas. A investigação captou de imediato a atenção dos serviços de segurança, apesar de não ser claro o que poderia ser feito com aquela informação. Uma das conclusões de um estudo assinado pela dupla de psicólogos, sob o título Nós somos o que gostamos, era que as pessoas que seguiam a página “Odeio Israel” preferiam sapatilhas Nike e chocolates Kit Kat. A agência Darpa, responsável por projetos de investigação do governo norte-americano na área da Defesa, é citada como financiadora em dois trabalhos de Kosinski e, na mesma altura, lançou uma enigmática “Operação Kit Kat”…
Quando, em 2013, o primeiro grande estudo de Cambridge foi tornado público, muitas empresas viram enorme potencial naqueles dados, também. E Chris Wylie, que acabara de terminar o seu curso de Direito e iniciara um doutoramento em Previsão de Tendências de Moda, pegou nas mesmas páginas para ver como poderiam aplicar-se no trabalho que mantinha com os liberais-democratas. Interessava-lhe saber, em particular, se os traços de personalidade poderiam dar indicações do comportamento político. Estando o liberalismo supostamente correlacionado com mentes abertas, entendeu que haveria ali uma forma de identificar novos potenciais militantes. Apresentou a sua teoria ao partido, dizendo que, se não mudasse o modo de comunicar com o eleitorado, iria perder metade dos 57 lugares no Parlamento. A formação política não avançou com as suas propostas e, coincidência ou não, registou o pior resultado de sempre, ficando reduzida a oito deputados.
As propostas que Wylie fizera antes das eleições despertaram a curiosidade de um militante liberal (e empresário) que detinha, à época, uma empresa chamada SCL Elections. Alexander Nix ofereceu um salário chorudo ao programador e condições que ele não conseguiu recusar: “Terás total liberdade para fazeres o que quiseres. Vem trabalhar comigo e testar todas as tuas ideias mais loucas.”
O ponto de inflexão
Assim nasceu a Cambridge Analytica, financiada pelo bilionário Robert Mercer, tendo como principais clientes os Departamentos de Defesa dos EUA e do Reino Unido e vários partidos políticos. Chris Wylie tornou-se, aos 24 anos, diretor de investigação da empresa, cuja especialização assentava nas “operações psicológicas”, prometendo transformar o que as pessoas pensavam – não através da persuasão mas com “dominância informativa”, usando rumores e notícias falsas.
Poucos meses depois, no final de 2013, Wylie conhece o norte-americano Steve Bannon, um guru da informação e do marketing político que chegara a Londres com a missão de ajudar Nigel Farage a conseguir tirar Inglaterra da União Europeia. O canadiano explicou-lhe a sua teoria: para alcançar mudanças políticas é preciso moldar a cultura, a sociedade. E perceber as tendências de moda seria fundamental para cumprir esse objetivo. “Donald Trump é como um par de Crocs, basicamente”, disse-lhe Wylie. O desafio seria conseguir levar as pessoas que imediatamente dizem “Argh… são horríveis, não gosto mesmo nada” ao ponto de irem comprá-las. Para descobrir como ativar esse “ponto de inflexão”, tinha criado um algoritmo. Mas para poder utilizá-lo necessitava das bases de dados trabalhadas pelos investigadores de Cambridge, que haviam definido os traços de personalidade a analisar. As negociações com Kosinski não chegaram a bom porto, mas outro investigador de Cambridge, Aleksandr Kogan, de origem russa, ofereceu-se para replicar a investigação dos seus colegas. Em 2014, criou um teste semelhante (thisisyourdigitallife) e conseguiu que 230 mil utilizadores do Facebook aceitassem dar-lhe acesso aos respetivos dados. Falhas nas definições de privacidade do Facebook permitiram que o investigador acedesse igualmente aos perfis dos amigos destes utilizadores (hoje isso já não é possível, diz a rede social), o que lhe permitiu criar uma base com dados de 50 milhões de pessoas. Essa falha de segurança foi detetada em 2015, reconhece o Facebook, que na altura aceitava partilhar alguma informação com investigadores académicos, aparentemente sem fins lucrativos. A empresa de Zuckerberg diz ter exigido que Kogan apagasse toda a informação recolhida sobre os amigos dos utilizadores que fizeram o teste. Mas, como hoje sabemos, o investigador não o fez – em vez disso, vendeu a informação à Cambridge Analytica.
Wylie tinha então caminho aberto para testar o poder do seu algoritmo. Alexander Nix levou a ideia a Moscovo logo em 2014, reunindo com o CEO da petrolífera Lukoil, Vagit Alekperov – a empresa é considerada uma fachada do verdadeiro cliente, que seria o Governo russo. “Na altura não fazia sentido nenhum para mim porque quereria uma petrolífera ouvir falar da forma de influenciar o voto dos norte-americanos”, diz Wylie. A estratégia do “miúdo” obteve os primeiros sucessos em campanhas de vários países do terceiro mundo, depois no referendo que determinaria o Brexit, seguindo posteriormente Steve Bannon para os EUA. Missão: eleger Trump.
O triunfo das ‘‘fake news’’
“Psicometria.” O que Wylie criou foi a capacidade de usar a análise psicológica da personalidade de um indivíduo, cruzá-la com dados estatísticos e usá-la como arma de propaganda direcionada. O que este grupo de pessoas precisa de ouvir para mudar de opinião? Não interessa se é verdade – aliás, é bem mais fácil espalhar uma mentira. E com notícias falsas plantadas nos jornais, blogues, televisões e redes sociais, terá conseguido levar milhões de norte-americanos – gente que um dia teve algum sentido de estilo – a comprar o seu par de Crocs.
O Facebook já tinha reconhecido no ano passado que 126 milhões de eleitores norte-americanos estiveram expostos a conteúdos falsos criados por piratas informáticos russos. O que diziam, e a quem diziam, seria decidido pelo algoritmo de Wylie, que agora teve um rebate de consciência. Ousou falar porque, assegura, não consegue continuar a ver o mundo a ser manipulado desta forma. O canadiano considera que os dados são a “nova eletricidade do século XXI” e que é urgente regulamentar a forma como são usados. “A NSA e o GCHQ [‘‘secretas’’ dos EUA e do Reino Unido] estão enquadradas por lei, enquanto as empresas privadas podem recolher os dados dos cidadãos como lhes apetece. A Cambridge Analytica fez desaparecer a fronteira entre espionagem e a tradicional pesquisa de marketing”, afirmou ao Le Monde, esta semana.
Todas as provas que tinha em seu poder (emails, contratos, documentos bancários) foram entregues à Justiça norte-americana – e o que se seguirá ninguém consegue prever. Mas há quem teorize que o verdadeiro alvo na revelação desta história é Mark Zuckerberg, esse outro miúdo que tem acesso aos dados de um quinto da população mundial. Ontem como hoje, informação é poder. E o criador do Facebook, que veio a público lamentar a utilização dos dados pela Cambridge Analytica e negar qualquer envolvimento no caso, podia até querer ganhar a vida só a vender sabonetes… mas como travar uma máquina capaz de vender Presidentes?