Será que o destino de um primeiro-ministro – e de um país – pode estar dependente das fintas e dos golos de um jogador de futebol? A resposta pode ser afirmativa. É o que acha Daniel Hough, professor de estudos políticos na Universidade de Sussex. Este académico acaba de publicar um artigo cujo provocador título fala por si: “Como Wayne Rooney [avançado do Manchester United] pode ajudar o Reino Unido na União Europeia”.
O seu pretexto é abordar um dos temas que promete alimentar inúmeras polémicas e teorias apocalípticas nas próximas semanas e meses: o referendo para os britânicos saírem da União Europeia. Embora o primeiro-ministro David Cameron ainda não tenha confirmado a data, os meios de comunicação social dão como certo que será a 23 de junho. Ora três dias antes, no campeonato da Europa a disputar em França, a seleção inglesa, capitaneada por Wayne Rooney, tem um jogo decisivo. Se vencer essa partida com a Eslováquia, o mais provável é que ultrapasse a fase de grupos. O que deixaria os adeptos eufóricos e convencidos que o título europeu fica logo ao alcance de Rooney, Jamie Vardy, John Stones e companhia. Como explica Daniel Hough, o desempenho dos jogadores pode refletir-se na popularidade do Executivo. E invoca um antecedente histórico: no verão de 1970, o governo trabalhista de Harold Wilson perdeu surpreendentemente as legislativas para os conservadores de Edward Heath devido ao afastamento prematuro da seleção inglesa no campeonato do mundo, disputado no México.
David Cameron – que ainda não revelou a forma como votará, fazendo depender a sua opção do resultado de negociações com a UE – parece não correr grandes riscos se agendar o referendo para uma quinta-feira de junho. Além dos imponderáveis futebolísticos, o também líder dos tories quer ver a “questão europeia” resolvida quanto antes: a situação económica doméstica e internacional pode agravar-se a qualquer momento e não faz sentido adiar o assunto para 2017, ano de legislativas na Alemanha e de presidenciais na França. Chamar os eleitores em dezembro, outubro ou mesmo setembro seria uma aposta mais arriscada porque os estudiosos dos fenómenos eleitorais garantem que a abstenção tende a ser superior nos meses mais frios e com menos luz. Como em julho e agosto é suposto haver muita gente de férias é natural que a escolha venha a recair no mês do solstício de verão. No entanto, todas estas contas são minudências tendo em conta o que está em causa: o futuro do Reino Unido e da Europa. Algo que os dirigentes dos 28 terão de discutir esta quinta e sexta-feira (18 e 19) em Bruxelas.
Até há bem pouco tempo, poucos levavam a sério um Brexit – a saída dos britânicos da comunidade à qual aderiram em 1973, quando esta era ainda um restrito clube de seis estados membros e vulgarmente conhecida por CEE. Agora, as sondagens revelam que esse é um cenário bem real. Um estudo de opinião da empresa YouGov, publicado há duas semanas pelo eurocético The Times, revela que 45% do eleitorado são “outers” (defensores do abandono), 36 são “inners” (adeptos da permanência) e 19% continuam indecisos. Algo nunca visto nos últimos três anos. O que, a confirmar-se nas urnas, pode ser um cataclismo de consequências imprevisíveis, capaz de pôr mercados e investidores à beira de um ataque de nervos perante a possibilidade de uma nova recessão global. Mas não só.
“O Brexit seria o caso mais espetacular de masoquismo da diplomacia britânica desde que o rei Jorge III perdeu a América por causa dos impostos sobre o chá”, escreveu na revista Prospect Anatole Kaletsky, presidente do Instituto Para o Novo Pensamento Económico. É que o corte com a UE e o regresso de Londres à sua política de “esplêndido isolacionismo” – como ficou conhecido no final do século XIX – parece hoje um contrassenso que teria implicações imediatas no reino de Isabel II. A líder do Governo da Escócia, Nicola Sturgeon, já avisou que convocará uma nova consulta popular sobre o futuro do território para não ficar refém de Londres. Ou seja, os nacionalistas escoceses admitem referendar a independência e pedir a adesão formal à UE, preenchendo o lugar vago deixado por Cameron. Um exemplo que pode também alastrar à Irlanda, onde os republicanos do Sin Fein podem voltar a lutar pela reunificação da ilha, para que Dublin e Belfast falem a uma só voz e decidam o seu destino em conjunto e de forma soberana. Tudo cenários que mudariam por completo a configuração do reino e voltam a evidenciar um problema recorrente: “O Reino Unido perdeu um império e ainda não encontrou o seu papel no mundo”, afirmou em 1962, Dean Acheson, antigo chefe da diplomacia dos Estados Unidos. Um comentário que poderia ter sido feito esta semana. Muitos britânicos ainda olham com nostalgia para a época vitoriana e recusam admitir que o seu país é uma potência de segunda ordem, dependente da “relação especial” com os EUA, como lhe chamou Winston Churchill. Claro que o arsenal atómico e o direito de veto no Conselho de Segurança da ONU ainda lhe concedem um poder imenso mas Londres não deixa de ser um parceiro que Washington olha de cima para baixo – basta recordar a famosa expressão de Condi Rice, a secretária de Estado de George W. Bush, sobre quem faz o quê nas questões internacionais: “US cooks. Europe does dishes” (Os EUA cozinham. A Europa lava os pratos).
“Se nós queremos ter um papel global em matéria de ajuda ao desenvolvimento, proteção ambiental, política externa e de segurança, então precisamos dos britânicos”, disse há pouco mais de um mês o presidente do Parlamento Europeu (PE), Martin Schultz, à revista Der Spiegel. É dos poucos que nunca escondeu publicamente o seu receio pelo Brexit. O mesmo se pode dizer do Presidente da Comissão, Jean Claude-Juncker, muito criticado pela sua pessimista antevisão para 2016. Na sua primeira conferência de imprensa do ano, o antigo líder do Luxemburgo admitiu as “múltiplas crises” (refugiados, avanço do euroceticismo e dos populismos, a falta de credibilidade dos governos e das instituições comunitárias), mas afirmou ter “toda a certeza” sobre um acordo – uma “solução permanente” para evitar o Brexit. Nas últimas semanas, David Cameron e Donald Tusk, o polaco que preside ao Conselho Europeu, chegaram a um entendimento sobre as reivindicações de Londres, incluindo a possibilidade de limitar temporalmente a livre circulação e as ajudas sociais a trabalhadores da UE residentes no Reino Unido (84 mil indivíduos). Esse suposto entendimento que dispensaria alterações aos tratados terá agora de ser aprovado – ou não – durante o Conselho Europeu desta semana.
Alguns eurodeputados, diplomatas e funcionários da UE assumem como real a possibilidade de uma “desintegração” da comunidade que garantiu a paz e a prosperidade a milhões de europeus nas últimas seis décadas. No entanto, tendo em conta a devoção da chanceler Angela Merkel pelo desporto-rei, talvez ela recorde ao seu homólogo britânico que o Brexit obrigaria Londres a celebrar novos acordos bilaterais com os 27 estados da UE e ainda muitos mais com o resto do mundo. Em suma, uma enorme chatice. Que pode muito bem ser evitada para ambos ficarem livres em junho para ver a bola…