Há cerca de um mês, inspetores do Ministério do Trabalho da Venezuela prenderam vários funcionários da Polar. A empresa fabrica e distribuiu a Pepsi-Cola local e os seus empregados teriam parado propositadamente a produção. Eram assim suspeitos, no jargão revolucionário do “Socialismo do Século XXI”, de um delito de sabotagem económica – uma acusação várias vezes propalada pelo próprio Presidente, Nicolás Maduro, contra a multinacional. Os empregados foram libertados três dias depois, mas o episódio ilustra o grau de radicalismo que se vive no país, com duas narrativas bem diferentes: enquanto a Pepsi alegou que era incapaz de importar as matérias primas para manter a fábrica a funcionar, por causa da escassez de divisas em moeda forte (dólares), o Governo pareceu ver ali mais um ato da “guerra económica”, produto da “especulação” e da fome desenfreada de lucro de uma “burguesia parasitária”.
Compras biométricas
Desde que, a 6 de dezembro, a Mesa de Unidade Democrática ganhou as eleições para o Parlamento, com dois terços dos votos e depois de 17 anos de uma câmara controlada pelos herdeiros de Hugo Chávez, que o risco de o país se partir ao meio não para de aumentar. A vitória da oposição foi vista como uma castigo a Maduro, que não se mostrou capaz de contrariar o declínio económico. As exportações da Venezuela dependem hoje a 95% do petróleo. A escassez é tal que para comprar farinha, leite, óleo, manteiga, champô, sabonetes é preciso esperar longas horas nos supermercados – foi até proibido pernoitar à porta destes. Para combater o mercado negro e a especulação, os clientes têm de sujeitar-se a controlos biométricos ou à apresentação dos bilhetes de identidade quando compram algo. Um saco de notas dá para dois cafés e duas águas – e perde-se tanto tempo só a contar o dinheiro que o prazer daí retirado é duvidoso. Os turistas são aconselhados a não sair à noite em Caracas, uma das cidades mais violentas do planeta.
A oposição quer substituir um sistema “falhado”, que diz estar na origem de todos os males, por um modelo orientado para a economia de mercado – “neoliberal”, no dizer dos críticos: acabar com os subsídios à gasolina e a outros produtos, que drenam a economia, através do tráfico transfronteiriço; terminar com um sistema de câmbios fixos com quatro valores diferentes (um dólar pode valer entre seis a 800 bolívares, consoante quem o compra e onde é comprado), que, efetivamente, torna numa decisão económica racional capitalizar a diferença cambial, em vez de produzir; apostar na iniciativa privada.
Parlamento alternativo
A resposta de Maduro tem sido reforçar, com todas as armas, o regime. Nomeou como novo ministro da Economia Luis Salas, um sociólogo – próximo de figuras ligadas ao Podemos espanhol – que acredita que a inflação é uma invenção do capitalismo e do seus usurários. E as pastas mais importantes do Governo continuam nas mãos de militares fiéis ao regime. Nomeou, já depois da derrota, uma dezena de juízes para o Tribunal Constitucional – e de seguida conseguiu que este anulasse a eleição de três dos deputados da MUD, privando-a assim da sua maioria de dois terços, que lhe permitiria, entre outras coisas, demitir membros do Governo ou convocar referendos. Criou um parlamento comunitário, que pretende seja “uma instância legislativa do povo desde a base” e para o qual pretende transferir “todo o poder” – em concorrência direta com a assembleia legitimamente eleita. E agora o “filho de Chávez” pretende que lhe sejam atribuídos megapoderes para enfrentar o “estado de emergência económica”, decretado na sexta-feira, 16. Mas na realidade, o decreto, publicado na Gazeta Oficial Extraordinária 40828, é mais uma tentativa de minar o parlamento, deixando Maduro à vontade para governar por decreto durante 60 dias. Um desafio que arrisca dividir ainda mais o país.
Curiosidades bolivarianas
Boas maneiras – É de bom tom tratar a primeira dama, Cilia Flores, como “Primeira Combatente Revolucionária”. É de mau tom, senão mesmo impossível, perguntar-lhe como estão os seus dois sobrinhos (presos nos EUA por narcotráfico).
Momentos de humor – Entre as medidas para combater a crise está a criação de um Ministério da Agricultura Urbana; uma candidata do PSUV propôs que se semeassem plantas de paracetamol para resolver a falta de antiinflamatórios; na Venezuela não há escassez de capital. Há, isso sim, «uma greve de investimentos dos empresários»
Guerra de símbolos – Chavéz já tinha mudado o nome do país para República Bolivariana da Venezuela, em honra de Simón Bolívar. Depois, mandou exumar o seu cadáver para se certificar que não tinha sido envenenado, como suspeitava. De caminho, mandou estudar-lhe o crânio e executar uma polémica reconstrução digital da face, que esteve exposta no Parlamento até que o novo presidente da Assembleia, da oposição, a mandou retirar por entender que tinha motivações políticas.