O segundo Orçamento de Mário Centeno é um documento feito de equilíbrios, para satisfazer as exigências à esquerda do Bloco de Esquerda (BE), do PCP e do PEV, ao mesmo tempo que mantém o rigor nas metas exigidas por Bruxelas em relação ao défice, à dívida e ao crescimento económico. Mas os equilíbrios são delicados e instáveis. E contêm riscos. A subida da receita não compensa o aumento da despesa. A redução do défice, conseguida sem consolidação da despesa, conta com um crescimento económico demasiado otimista e com ajudas extraordinárias de €750 milhões que não voltarão a repetir-se. No OE para 2017, também há truques. A promessa de eliminar a sobretaxa e aumentar as pensões é cumprida, mas com atrasos e de forma gradual. A austeridade é menor, mas continua lá. Depois de uma leitura atenta do documento, a VISÃO dá-lhe uma ajuda para perceber o que pode correr mal em 2017.
1 – Mais de metade do esforço de redução do défice vem, não da austeridade, mas antes do crescimento económico. E se a economia não crescer 1,5% em 2017, como o Governo prevê?
É um risco considerável. Os últimos dados do investimento mostram a maior quebra desde 2013, o que faz com que a meta de 3,1% traçada para o próximo ano pareça difícil de alcançar – mesmo com a nova vaga de fundos comunitários. Sem investimento, a economia não cresce, ou então cresce muito pouco. E dificilmente o PIB avançará 1,5%, como previsto neste OE para 2017. Isso não seria inédito. Este ano, o PIB deverá aumentar apenas 1,2%, menos seis décimas que as projeções iniciais do Governo. Se as coisas correrem mal, o contributo da economia para a redução do défice no próximo ano – ao crescer, a economia gera automaticamente mais impostos e menos despesa –, ficará aquém da estimativa de €903 milhões. A meta que o Governo levou a Bruxelas – défice de 1,6% do PIB com um corte no saldo estrutural de 0,6 pontos percentuais (p.p.) – cairá inevitavelmente por terra. E mais défice é igual a mais dívida.
2 – A outra metade resulta de ajudas “extraordinárias” e irrepetíveis. O que acontece se a garantia dada ao BPP não for recuperada em 2017?
Também aqui há riscos. O Governo conta receber em 2017 mais €303 milhões em dividendos do Banco de Portugal, resultantes de mais-valias com dívida pública realizada, um valor ao qual acresce €450 milhões da recuperação da garantia dada pelo Estado em 2008 ao Banco Privado Português (BPP), ainda dependente de decisões judiciais que remontam a 2010 e que ainda podem arrastar-se para lá de 2017. A estas duas medidas, que rendem em conjunto €750 milhões, junta-se uma poupança – não quantificada – em juros e em PPPs, que situam o contributo global deste conjunto de medidas para a redução do défice em €812 milhões. Mais uma vez, se algo correr menos bem, o défice não desce tanto como o previsto, pondo em risco a meta enviada para Bruxelas e, também, a saída do Procedimento por Défice Excessivo. E algumas delas – os dividendos recorde do BdP e a garantia do BPP – são medidas irrepetíveis, que produzirão efeitos apenas num único ano e cujo resultado não depende da vontade do Governo.
3 – O Orçamento para 2018 está já condicionado. Como é que, daqui a um ano, o Governo vai compensar a perda de receita da sobretaxa e pagar o aumento das pensões a partir de agosto?
São cerca de €450 milhões a mais que o Governo vai ter de encontrar quando, daqui a um ano, fizer as contas para o próximo OE. Em 2018, torna-se necessário compensar os €180 milhões que a sobretaxa ainda vai render em 2017, com o seu fim faseado, para além do custo com o aumento extraordinário das pensões, previsto para agosto mas que se prolongará pelos anos seguintes. Sem adiantar números exatos, o ministro Vieira da Silva estimou esse valor em mais de €100 milhões. Além disso, o alargamento do abono de família representará uma despesa de mais €80 milhões e o novo apoio a deficientes mais €60 milhões.
Este esforço orçamental é apreciável mas não é novo. O Governo também teve de acomodar o esforço exigido em 2017 pela reposição total dos salários no Estado a partir de outubro (€257 milhões) e pela redução do IVA na restauração, que ocorreu no segundo semestre do ano (€175 milhões).
4 – Aumentam vários impostos indiretos e são criados dois novos impostos. Mas, e se não gerarem a receita prevista?
Aumentar impostos é sempre impopular. Mesmo que sejam os impostos indiretos, como sucederá em 2017. Enquanto nos impostos diretos a progressividade das taxas protege os que menos têm, nos impostos indiretos isso só acontece se o consumo for moderado. Nos combustíveis ou nos refrigerantes com açúcar, ricos e pobres pagam uma taxa de imposto igual. E, quando mais subir o imposto, mais pode descer o consumo, afetando a receita do Estado. Este ano, a receita resultante da subida do ISP, por exemplo, não está a ter o resultado esperado. Outra crítica feita a esta opção fiscal prende-se com a decisão de aumentar os impostos indiretos sobre dois dos setores em recuperação: o imobiliário, com o adicional do IMI que vai taxar em 0,3 o património superior a €600 mil, e o turismo, com o agravamento da tributação sobre o alojamento local.
Até ao fecho desta edição, o Ministério das Finanças ainda não tinha divulgado o quadro com a previsão da receita de cada imposto que é habitualmente distribuído com a proposta de OE.
5 – O OE cumpre as metas, mas sem redução da despesa. E se não agradar a Bruxelas? Qual vai ser a reação dos mercados?
Para evitar sanções e congelamento dos fundos estruturais, o Governo enviou na segunda-feira, 17, para Bruxelas a proposta de OE acompanhada por um relatório onde apresenta cativações orçamentais permanentes de €445 milhões e cativações provisórias de €666 milhões que garantem o défice de 2,4% em 2016. O resto vem da contenção do investimento público e da poupança nos juros da dívida. A amnistia fiscal a lançar no final do ano, que deverá permitir um encaixe de €100 milhões, fica de fora destas contas, de acordo com as afirmações no Parlamento do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Quanto ao défice para 2017, está ainda por saber se Bruxelas acredita nas contas. O défice reduz-se 0,8 p.p. e o saldo estrutral 0,6 p.p., o que vai de encontro às exigências da Comissão Europeia. Mas essa contenção é feita sem cortes significativos nos encargos do Estado, num ano em que a reposição de salários (€257 milhões) e o aumento das pensões (€187 milhões) aumentam consideravelmente a despesa pública. Neste capítulo a única poupança importante, no valor de €122 milhões, é a manutenção da regra de apenas uma entrada por cada duas saídas de funcionários do Estado. Mas o que se poupa num lado pode representar um custo no outro, já que a maioria dos funcionários saem para a reforma.
Além disso, medidas “extraordinárias” como o aumento dos dividendos do Banco de Portugal, o retorno da garantia do BPP ou mesmo a amnistia fiscal não apresentam um efeito estrutural. E o atual Governo conhece bem os obstáculos que Bruxelas levanta em relação a todas as medidas que não assumem um caráter permanente de redução da despesa.
6 – Durante o debate na especialidade, o BE quer alargar as deduções na educação e o PEV pretende deduzir os passes dos transportes no IRS. O que acontece se o Governo disser que não?
Temas como o aumento das pensões, o fim da sobretaxa e o novo imposto sobre o património foram negociados até ao limite entre o Governo e os seus parceiros da “geringonça”. Após a apresentação do documento, o ministro das Finanças, Mário Centeno, e o ministro do Trabalho e Segurança Social, Vieira da Silva, garantiram que não há margem neste OE para acomodar mais aumentos da despesa. Mas os partidos de esquerda vão certamente insistir em matérias como o aumento das deduções na educação e nos transportes públicos durante o debate parlamentar do OE. Resta, por isso, ao primeiro-ministro, António Costa, recorrer uma vez mais à sua habilidade negocial para conciliar mais exigências à esquerda com as metas traçadas por Bruxelas. Caso contrário, resta-lhe dizer que não.
(Artigo publicado na VISÃO 1233, de 20 de outubro)