O sistema financeiro nacional está a passar por um dos períodos mais difíceis e conturbados da sua história. Os quatro maiores bancos de origem nacional enfrentam desafios que poderão deixar marcas para o futuro: a Caixa Geral de Depósitos necessita de uma injeção de capital de 4 mil ou de 5 mil milhões de euros, o Novo Banco pode ser vendido abaixo do preço que custou, as ações do BCP valem dois cêntimos em bolsa e o BPI enfrenta uma guerra pelo poder. Apesar de tudo isto, os rácios de solvabilidade dos bancos nacionais são dos mais elevados da Europa. Afinal o que se passa com a banca portuguesa?
Os verdadeiros problemas são a elevada carga de crédito malparado e o acumular de imparidades – desvalorização dos ativos que estão dados como garantias aos empréstimos – que asfixiam as contas de quase todas as instituições bancárias.
Muitas destas imparidades resultam de negócios ruinosos para os bancos, como foi o empréstimo que a Caixa, quando era liderada por Carlos Santos Ferreira, com Armando Vara como administrador, fez a vários empresários, entre os quais Joe Berardo e Manuel Fino, para comprarem ações do BCP, envolvendo-se na guerra de poder daquele que era o maior banco privado português da altura. As ações do BCP desvalorizaram e a CGD executou os títulos que estavam dados como garantia, registando perdas de milhões. Santos Ferreira e Vara acabaram na administração do BCP.
Por estas e por muitas outras, no seu conjunto, os bancos tem nas suas carteiras crédito malparado superior a 18 mil milhões de euros. E, em termos de imparidades, os números disparam para os 30 mil milhões de euros.
Mas a gestão de malparado e de imparidades não é um tema novo para o sistema financeiro. Sempre aconteceu, mesmo nos períodos em que muitos bancos apresentavam lucros de vários centenas de milhões de euros. A diferença, agora, é o peso que estes fatores têm nos balanços.
O malparado cresceu de uma forma descomunal. Atualmente representa quase 9% do total do crédito concedido pelos bancos, quando em 2010 era inferior a 3 por cento. E, segundo uma fonte do setor contactada pela VISÃO, os “bancos já absorveram quase 40 mil milhões de imparidades desde a chegada da troika ao nosso país”.
O aperto da construção
Um dos setores que mais contribuiu para a dimensão atual das imparidades e do malparado foram a construção e o imobiliário. No final do ano passado, do total dos empréstimos a empresas, 15,5% estava em incumprimento, o que corresponde a um valor de 12,65 mil milhões de euros. Antes da chegada da troika, a percentagem era de apenas 4,1 por cento.
O empréstimo da Caixa ao empreendimento de Vale de Lobo, atualmente a ser investigado no âmbito da Operação Marquês, é um bom exemplo. A Caixa investiu 283 milhões e as imparidades já ascendem a 138 milhões de euros.
O País viveu muitos anos suportado por grandes obras públicas e por uma bolha imobiliária que acabaram por rebentar com o início da crise. E foi a banca que suportou uma grande parte das perdas. Muitas empresas deixaram de pagar as dívidas, pois não conseguiam mais obras ou vender mais casas e, quando a banca executou o penhor sobre os ativos, estes já tinham desvalorizado uma grande parte do seu valor.
Entre todos os créditos concedidos para imobiliário e para construção civil, 30% estava em incumprimento no final de 2015. Por essa razão, muitos dos bancos começaram a livrar-se destes ativos e a tentar renegociar com as empresas deste setor. O antigo dono da Soares da Costa, Manuel Fino, já fez essa renegociação, ficando a pagar a dívida a três anos, o mesmo acontece com o atual dono da construtora o angolano António Mosquito.
Há uns anos, a construção e o imobiliário absorviam 25% do total do crédito concedido pelos bancos. Atualmente, este valor está abaixo dos 16 por cento.
Todos ao mesmo
E, quanto maior o problema, mais dificuldades cria ao próprio sistema. Quando um cliente deixa de pagar um empréstimo, o banco executa a hipoteca e vende o ativo que estava dado como garantia. O banco até podia perder parte do valor, mas recebia uma boa percentagem do capital em dívida. O processo é simples e as regras do jogo são sobejamente conhecidas.
O problema é que agora a dimensão dos ativos que estão dados como garantias é tão grande que acabam por se desvalorizar brutalmente. Há casos em que os imóveis são vendidos apenas por 10% do valor a que estavam contabilizados.
Imagine que um banco tem um grande imóvel que foi executado como garantia a um empréstimo que não foi pago. Vai tentar vender esse imóvel que está dado no balanço com um valor de 10 milhões de euros. Caso haja um comprador interessado, o banco pode vender esse imóvel pelo valor pelo qual ele está contabilizado e não ter perdas.
Mas, agora, passe para outro cenário: esse mesmo banco não tem um mas sim milhares de imóveis. E, além deste, também os outros bancos, que estão em situações similares, querem desfazer-se desses “monos” dos seus balanços. Se forem todos ao mesmo tempo ao mercado, a desvalorização é mais do que certa. E um imóvel de 10 milhões pode ser vendido por 2 ou 3 milhões devido à pressão de venda. E essa é uma das razões pelas quais muitos estrangeiros estão a comprar prédios em Lisboa. “Um imóvel situado numa zona antiga de Lisboa, que pertencia ao Grupo Espírito Santo, esteve à venda por mais de 7 milhões de euros, durante anos. Foi vendido em 2013 por cerca de 3 milhões”, garante um promotor imobiliário.
Além das perdas, se os bancos tiverem um ativo problemático no seu balanço têm de criar provisões para garantir as perdas potenciais da venda desse ativo. Na prática, isto significa que parte do dinheiro que a banca vai gerando e que poderia ser contabilizado como lucros, acaba por ficar alocado no balanço como provisão para essas potenciais perdas.
Prejuízos ao alto
Com estes problemas e com a alocação de dinheiro para este fim, os bancos acumulam prejuízos atrás de prejuízos. Em apenas cinco anos, as perdas acumuladas da banca somam mais de 11 mil milhões, um valor que foi gravemente inflacionado em 2014 devido aos problemas do Banco Espírito Santo, que, num só ano, perdeu mais de 4 mil milhões de euros. De qualquer das formas, o que parecia ser uma perda temporal, devido às agressivas medidas de austeridade impostas ao País, acabou por se tornar numa constante nos balanços dos grandes bancos portugueses.
Neste período, a Caixa perdeu quase 2 mil milhões, enquanto o BCP já vai perto dos 3 mil milhões. A boa notícia é que o banco liderado por Nuno Amado já conseguiu voltar aos lucros em 2015. Mas nem isso tem conquistado a confiança dos investidores. As ações do BCP valem dois cêntimos e não mostram tendência para descolar acima daquela referência.
O Novo Banco está em processo de venda. Soube-se esta semana que foram aceites quatro propostas para a compra da instituição financeira que resultou da cisão do Banco Espírito Santo. O valor das ofertas ainda não é conhecido, mas tudo indica que são abaixo dos valores que o Fundo de Resolução colocou no Novo Banco. Caso isso aconteça, todos os principais bancos portugueses irão perder dinheiro com esta operação, pois foram eles os principais financiadores da injeção de capital no Novo Banco.
Como sair desta situação?
Há cada vez mais vozes a exigir a criação de um “banco mau” que absorvesse estes ativos dos bancos, aliviando-lhes o balanço, algo que foi defendido por António Costa, em abril, admitindo que deveria ser criado “um veículo de resolução para o crédito malparado de forma a libertar o sistema financeiro de um ónus que dificulta a participação mais ativa nas empresas”. Os bancos receberiam o dinheiro e acabavam por libertar parte do capital que está alocado para fazer face a perdas nesses mesmos ativos.
Mas esta é uma solução que não agrada a todos. Com a pressão de venda de ativos tóxicos, muitos dos chamados “fundos-abutre” tentam tirar o melhor proveito da situação. Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, já deixou claro que “não há margem de financiamento público para o efeito”.
O economista Ricardo Cabral, por seu turno, defende que o “banco mau” deveria ser criado mas com capital público para “impedir a venda dos ativos ao desbarato”. O professor de economia da Universidade da Madeira salienta ainda que esse veículo “deveria ser gerido como um banco para conseguir ter acesso a liquidez do eurossistema”. Desta forma, os bens que viria para esse “banco mau” seriam vendidos a um preço razoável. E quanto custaria uma solução desse género? “Menos do que o montante que o Estado irá injetar na Caixa Geral de Depósitos”, garante Ricardo Cabral. Segundo os cálculos deste economista, o custo poderia rondar os 2 mil milhões de euros.
A solução está ainda a ser apreciada em Bruxelas, donde poderá vir a decisão final. Só depois do modelo ser desenhado é que se poderá tirar ilações do custo que uma medida deste género terá para o contribuinte.
Com a necessidade de alocar recursos para estes fins, os bancos deixam de emprestar ao tecido produtivo nacional. Sem esse crédito, as empresas não investem e não criam emprego. Sem investimento e sem criação de emprego, há cada vez mais empresas e particulares a deixar de pagar aos bancos. É uma verdadeira espiral que tem de ser travada.