
A água cai de cima. Vamos acreditar que vem do céu, mesmo que não tenha chovido na última semana. Só reparamos nela porque damos de caras com um homem, nu da cintura para cima, a barbear-se com uma gilete, aproveitando aquele riacho que brota sabe-se lá de onde. Estamos mais ou menos a meio da íngreme inclinação que nos levará à entrada da favela Chapéu Mangueira, paredes-meias com a da Babilónia, depois de deixarmos a praia do Leme para trás, na zona Sul, a mais elitista da cidade.
Não muito longe de onde se barbeia este homem, está o parque de estacionamento dos moto-táxis que ajudam os turistas a transpor esta subida. Há muito que a zona está pacificada e por isso virou atração. Ao chegarem lá acima, hão de reparar numa antiga camioneta estacionada, repleta de cheirosos frutos tropicais e alguns legumes de cores vibrantes, a serem vendidos a bom preço como em qualquer mercado de rua.
Pelo caminho, com o estômago em pulgas para chegar ao Bar do David – “da favela para o mundo”, mas já lá vamos -, fazemos contas simples que nos deixam perplexos: se um em cada cinco brasileiros vive numa favela, e se nem toda a gente é “do tráfico”, por que raio se há de excluir todas estas áreas do Street View, ferramenta da Google, usada e abusada pelos visitantes de uma cidade?
Cristiano Bento, tratado carinhosamente na comunidade por Palito devido à sua fraca compleição física, é parte da resposta a esta pergunta que já não faz sentido desde que a Google começou, há dois anos, a pensar no programa Está no Mapa (e mais recentemente no Para Lá do Mapa), para estar pronto mesmo a tempo das Olimpíadas, quando a cidade ainda terá mais gente a passear pelas suas ruas.
Palito foi um dos mil walkers desafiados pelo gigante americano para mapear 26 favelas cariocas, através de cartografia digital. Só para explorar a Chapéu Mangueira, onde vive (junto com mais 13 mil habitantes) e de onde foi desviado do tráfico, foram precisos dois meses (na Rocinha, a maior do Rio, o tempo dobrou). Aprendeu rapidamente a trabalhar com a aplicação de mapeamento e saiu para a rua apenas com um telefone na mão (nas favelas não dava para levar às costas a mochila com 16 câmaras, que tira fotogafias a cada dois segundos e meio). Palito já sabia que só podia voltar a casa depois de ter acumulado pelo menos sete pontos de referência, desde vielas a hostels ou comércios mais ou menos escondidos (nas casas que se amontoam dentro das favelas, há muita gente a cozinhar doces e bolinhos, sem que se saiba bem onde podem ser comprados). “Alguns moradores tentaram resistir, mas quando viam que os vizinhos aderiam, acabavam por aceitar e dar os seus dados”, conta Palito. Com o consentimento garantido, os walkers fotografavam as fachadas, pediam informações sobre os negócios (nome, produtos para vender, contactos e alguma ajuda para lá chegar) e descarregavam os dados para a Google. E voilà, num instante, tudo disponível, agora que os Jogos estão mesmo a começar. As favelas entraram na era digital e podem ser exploradas livremente, nem que seja apenas no telemóvel.

VISTAS A 360 GRAUS
Se o Bar do David, o primeiro boteco de uma favela (na zona sul, ok, mas ainda assim numa favela) a ser premiado, já saiu no New York Times, na Time Out e no Le Figaro – porque não haveria de estar em relevo no Street View? O dono, morador desde sempre da Chapéu Mangueira, e que dá nome ao restaurante, já vai na quarta década de vida, mas começou cedo. “Aos sete anos já puxava carrinho de madame nas feiras, depois fiz pesca submarina e tornei-me mestre de bateria na escola de samba”, discorre, sem pinga de modéstia. “Busquei boas opções para a minha vida, mas nem todos aqui tiveram as mesmas oportunidades do que eu.” Hoje, e é ele quem assegura, tornou-se numa referência para os jovens da favela, ao projetá-la para outros países através das iguarias servidas no bar, que se estende calçada fora. Por dia, passam cerca de 500 pessoas pelo David, querendo deliciar-se com as suas receitas à base de frutos do mar – bolinhos de camarão ou de bacalhau, croquetes de sardinha, pastéis, feijoada ou carne sol.
Além desta entrada nas favelas – ainda mais a fundo através da plataforma Além do Mapa, que mostra esse universo em vídeos captados em 360 graus – a Google Maps criou funcionalidades específicas para o Rio, como cartografia disponível offline com indicações de voz para as rotas aconselhadas, alertas de trânsito (muito útil numa cidade em que se pode demorar duas horas para percorrer vinte quilómetros), informações sobre transportes (qual o mais indicado de apanhar, quanto tempo demora e o custo da viagem, incluindo o novo VLT e a interminável linha 4 do metro), uma ajuda para optar entre táxi e uber, se bem que no Rio apanhar um carro amarelo é mais fácil e rápido do que entrar na aplicação da concorrência, e também as ciclovias disponíveis e o trajeto mais adequado para fazer de bicicleta (apesar dos seus morros, grande parte do Rio é facilmente ciclável).
A funcionalidade Explore no Google Maps permite agora que os visitantes do Rio encontrem os restaurantes e bares das redondezas (e possam ler os textos e ver as fotos correspondentes que os ajudarão a decidir onde ir comer as especialidades brasileiras ou onde beber um chope). Podem ainda, mesmo se não conseguiram ingressos para as provas, entrar dentro dos locais específicos dos Jogos Olímpicos, como os diferentes pavilhões ou estádios, dispersos em vários pontos da cidade. Ao mesmo tempo, e por curiosidade, podem viajar ao passado, descobrindo como estavam as áreas antes da intervenção para a grande competição desportiva. Quem diria que, mesmo sem sair do hotel, se poderia ter tamanha experiência carioca? Basta ter à mão um telemóvel e, já agora, Internet que permita aceder a estas ferramentas exploratórias.

Ramede Felix