Não fizeram os mínimos regulamentares, mas são considerados, nestes dias, pelos outros atletas, como o exemplo máximo dos ideais olímpicos. “Eles mostram a força que o desporto pode ter para ultrapassar barreiras e, ao mesmo tempo, transformar vidas”, diz-me a antiga nadadora australiana Sophie Edington (ex-recordista mundial dos 50 metros costas), quando seguimos no autocarro a caminho da Aldeia Olímpica.
Nos bancos à nossa frente seguem os atletas que são o alvo dessa admiração, junto com os seus treinadores e dirigentes. Vão todos sorridentes, a brincarem uns com os outros e a tirarem “selfies” que depois partilham num grupo do Facebook que Sophie Edington criou de propósito para eles, como responsável pela comunicação da equipa mais especial destes Jogos Olímpicos. “É um sonho tornado realidade para eles. Mas é um sonho só possível porque eles são especiais, pois apesar dos tempos difíceis que passaram, das condições miseráveis em que foram obrigados a sobreviver, eles nunca desistiram do desporto. O desporto é a sua verdadeira pátria”, prossegue Sophe Edington, claramente satisfeita por poder partilhar do entusiasmo deste grupo, onde todos tentam comunicar em inglês.
Quando o autocarro estaciona e eles saem, com os seus equipamentos brancos ainda sem qualquer inscrição, são solicitados, de imediato, para mais um série de fotos. E o caminho até à entrada na Aldeia Olímpica é várias vezes interrompido, tanto por repórteres, como por voluntários e por outros atletas. Todos querem tirar a “selfie” com os heróis do momento. Todos querem incentivá-los. “Vocês são um exemplo incrível”, dizem-lhes. E eles sorriem. Sorriem muito.
Em nome de todos
Mas foi de cara fechada e rostos nervosos que, uma hora antes, se apresentaram ao mundo, no sábado, 30, seis dias antes do início dos Jogos Olímpicos. Perante uma plateia de uma centena e meia de jornalistas, na sala principal do Centro de Imprensa do Rio 2016, cada um sentou-se atrás da placa com o seu nome: os nadadores Yusra Mardini e Rami Anis e os judocas Popole Misenga e Yolanda Mabika (quatro da equipa de dez que desfilará, dia 5, na cerimónia de abertura). Os dois primeiros fugiram para a Europa (ela para a Alemanha e ele para a Bélgica) para tentar escapar à guerra na Síria. Os outros dois ficaram a viver no Rio de Janeiro, em 2013, quando aproveitaram a participação no Mundial de Judo e já não regressaram ao seu país – onde já sobreviviam em campos de refugiados.
Começaram nervosos e, percebia-se, cheios de medo, pois era a primeira vez que estavam naquela situação: sem saber como ligar e desligar o microfone, tentando acompanhar a tradução automática das perguntas que lhes chegavam em português, francês, inglês, árabe e japonês.
Yusra Mardini, a mais nova e com melhor domínio da língua inglesa, tomou as rédeas e, sozinha, aguentou as primeiras perguntas, explicando como “é um sonho” poder estar nos Jogos Olímpicos e que sente também a honra de “competir debaixo da bandeira olímpica, a única que une todos os países do mundo”.
Rami Anis seguiu-lhe os passos e desejou que “em 2020, nos próximos Jogos, já não seja precisa uma equipa destas”.
A emoção começou a soltar-se quando um jornalista dos Emirados Árabes Unidos perguntou se os atletas não sentiam pena por estarem a competir sob a bandeira do Comité Olímpico Internacional e não com os uniformes dos países em que nasceram. Os dois nadadores responderam que, de momento, essa questão não se lhes põe. E Rami Anis acrescentou: “O máximo que quero dizer é que, neste momento, não seria uma honra para mim competir com a bandeira da Síria”.
Desporto como família
Foi aí que os judocas Popole Misenga e Yolande Mabika começaram a soltar-se, expressando-se, ambos, num português duro, mas esforçado, quase sem verbos, mas com palavras que contavam histórias.
Como as de Yolande: “Comecei a aprender judo, aos 10 anos, num campo de refugiados no Congo. Fui aí que aprendi tudo o que sou. Depois, vim o Brasil, com a selecção do Congo, mas fomos abandonados. Durante dois anos, vivi na rua, tive fome, tentava procurar emprego, mas ninguém mo dava porque eu era refugiada e só falava francês, não sabia português. A minha sorte foi ter tido oportunidade de voltar ao judo, graças ao trabalho que o Flávio Canto (antigo judoca olímpico brasileiro) faz nas favelas. E é por isso que estou aqui. O desporto é a minha família. E agora estou já cheia de vontade de entrar em competição, de poder mostrar tudo o que sei e aprendi no desporto. Estar nos Jogos Olímpicos é o sonho de qualquer atleta e eu vou poder cumpri-lo”.
Popole também contou como se tornou refugiado, ainda criança. “Tinha 9 anos, mataram a minha mãe e fugi da guerra. Passei oito dias na selva, até chegar à capital, Kinshaza. Tive sorte por poder começar a aprender judo, que é um desporto que te dá valores importantes como a educação, o respeito, a concentração. E eu queria competir. Mas já não aguentava mais a vida no Congo e, por isso, em 2013, quando cheguei aqui ao Brasil, larguei tudo. E quando fui viver para a favela, eu pensava que nunca mais iria ter oportunidade de ter uma carreira desportiva. Voltei a fazer judo, mas nunca pensei que poderia, alguma vez, participar num torneio importante. Eu sou um refugiado, não tenho quase direitos, vou competir por que país? Afinal, o desporto transformou a minha vida. Tinha perdido a esperança e agora vou competir em representação de todos os refugiados, para lhes poder dizer que vale a pena manter a esperança, que temos que lutar”.
O treinador dos dois judocas, o experiente Geraldo Bernardes (responsável por seis medalhas olímpicas para o judo brasileiro em quatro Jogos), pediu a palavra: “A competição ainda não começou, mas o que eu sei é que estes atletas já ganharam a sua medalha”.
Popole pode, no entanto, ganhar ainda uma medalha muito especial. Desde que fugiu da guerra, ele nunca mais viu os seus irmãos. Dos mais novos, diz mesmo que nem sequer se recorda das suas caras. Mas mantém bem acesas as saudades de todos eles. E sabe agora que graças ao facto de estar na equipa dos refugiados do Comité Olímpico Internacional o seu rosto vai aparecer nas televisões de todo o mundo. E acredita que eles o podem reconhecer: “Se me puderem ver, vão perceber que o irmão deles está aqui a lutar. Quem sabe se um dia não vão conseguir pagar a passagem e virem ter comigo? Sabem que estou lutando!”
As lágrimas impediram que continuasse. E contagiaram muitos outros na sala. A conferência de imprensa terminou com uma salva de palmas. Como costuma acontecer com os campeões.