Sai uma canção dos R.E.M ou um verso de Manuel António Pina para os lados do Estádio do Dragão? Nesta altura do campeonato, os adeptos mais pessimistas do FC Porto devem andar com o It´s the End of the World as We Know It da banda norte-americana a mastigar na cabeça. Após a quebra de um longo período de supremacia no futebol nacional, os portistas mais otimistas, porém, ainda terão sempre uma frase poética de Manuel António Pina à mão para enfrentar os tempos que correm: “Não é o fim nem o princípio do mundo. Calma, é apenas um pouco tarde”.
Será? A seis pontos do Benfica, à beira de somar três épocas sem ganhar a Liga, com um passivo financeiro assustador, os “dragões” caminham para mais uma temporada com pouca prosa e quase nenhuma poesia. A época começou eufórica com Lopetegui e termina em pesadelo com Peseiro.
O tempo fornece, para o caso, as suas coincidências: há quase quatro décadas, na época de 1976/1977, o FC Porto quebrava um longo jejum de sucessos e iniciava, com a conquista da Taça de Portugal, o melhor período da sua história, vencendo, entre outros títulos, 22 campeonatos, duas Champions, a Taça UEFA e a Liga Europa. Para blindar o clube e escrever uma história diferente, havia um visionário chamado Pedroto e um chefe do departamento de futebol, de seu nome Pinto da Costa, que até teve de mandar fechar o bar interno do clube onde diariamente os “palpiteiros” de então se entretinham a minar a moral dos jogadores. Seguiram-se anos de FC Porto à Benfica dos 60´s. Agora adivinham-se épocas de Benfica à FC Porto dos 90´s. Os novos “palpiteiros” andam nas redes sociais e até já chegaram à casa-mãe da democracia: vejam-se as declarações do deputado Carlos Abreu Amorim, do PSD, confesso adepto portista, criticando os responsáveis da SAD portista, “pejada de nepotismo e de milionários que enriqueceram no clube e sem causa”. Por ironia, volvidos quase 40 anos desde a conquista que marcou o ressuscitar do dragão, resta ao clube “azul-e-branco” ganhar a mesma final do Jamor para disfarçar estragos e levar para casa a Taça, mais conhecida por “fruteira” entre aqueles que a desvalorizam sempre que não a ganham.
Tubarões, mística e Lopeteguis
Como é que o FC Porto desceu ao abismo? A pergunta é o que é, mas a resposta vale milhões de euros, pois a análise correta do diagnóstico pode gerar os ganhos milionários do futuro. “O FC Porto quis nadar no lago dos tubarões e os dentes são caros”, ironiza José Manuel Ribeiro. “Para os pagar, achou que podia ficar com os jogadores duas ou três épocas e vendê-los, depois substituí-los e vendê-los outra vez. A partir do momento em que uma equipa (Benfica) consegue mais estabilidade do que esse método garante, a ideia torna-se suicida”.
Para o diretor do jornal desportivo O Jogo, anormal foi que um clube ganhasse quase tudo durante décadas “apesar de não ser o maior, nem o mais rico, nem o mais influente”. Embora o FC Porto ainda gaste muito em contratações, esse poderio é, segundo o jornalista, uma ilusão: “Nos últimos anos, pesou mais a capacidade que o Benfica teve de segurar alguns jogadores-chave. O FC Porto não segurou nenhum e, esta época, já está obrigado a vender tudo o que puder outra vez”, refere.
O reencontro com os trilhos do sucesso não está garantido. Pelo menos, à vista desarmada. “No futuro”, crê José Manuel Ribeiro, o FC Porto “partirá sempre em desigualdade, mas, até certo ponto, já é isso que se passa. O Benfica arranca na frente, seja no acesso ao crédito, seja no peso social, seja na simpatia da Imprensa. Esteve foi trinta anos emigrado em Marte”.
Sempre que se acumulam desaires, vem à baila a tão incensada mística. Ou a falta dela. Para o escritor Álvaro Magalhães, essa “não é uma coisa que se pendure na lapela (ou na camisola) dos jogadores”. O que é então? “Todas as equipas têm mística e a mística é igual para todas, do FC Porto ao Pampilhosa”, refere o diretor do desportivo O Jogo, sublinhando: “A mística é uma vaga recordação dos jogos que se ganharam, martelada pela memória. A palavra correta é competitividade e a equipa mais competitiva do mundo é o Atlético de Madrid, que está cheio de estrangeiros. Não há dúvida de que o nervo foi todo trazido pelo treinador, mas, no futuro, também lhe hão de chamar mística”, assegura José Manuel Ribeiro.
O sociólogo João Nuno Coelho considera “impossível haver mística quando há apenas dois jogadores com mais de três anos de equipa principal: Helton e Varela (que nem são titulares)”, exemplifica. Ora, “ter jogadores de 12 nacionalidades diferentes também não ajuda. A permanência média dos jogadores no atual plantel do Porto é de 2,13 anos, praticamente a média nacional. Talvez não seja por acaso que, neste momento, Benfica e Sporting são os que têm plantéis formados por jogadores com mais tempo de equipa principal”. Perante isto o maior receio do também comentador e analista desportivo da RTP e da TSF, é que a mística portista seja incompatível com os interesses mercantilistas do futebol. “O FC Porto pode ser um campeão de vendas à escala internacional, mas isso de pouco valerá se esse for um fator que, em vez de fortalecer a equipa, apenas debilita a sua capacidade competitiva”.
Quando a viagem é a descer, os males parecem estar por todo o lado. E o Dragão não foge à regra. Estamos a chegar ao fim de uma era? “É muito provável, mas também é verdade que se pensou o mesmo em 2002, quando o FC Porto esteve três anos sem ganhar qualquer campeonato nacional. Depois disso venceu nove em 11 possíveis e três provas europeias, até 2013. Claro que, na altura, Pinto da Costa tinha 67 anos e não 78 como tem agora. Da mesma forma, será difícil surgir outro José Mourinho no caminho do Porto nos próximos tempos”, refere João Nuno Coelho. Segundo o sociólogo, piores “são os sinais de que o clube foi mudando de paradigma ao longo dos últimos tempos, até estar quase irreconhecível. Quem se lembra do Porto dos anos 80 e 90 dificilmente reconhecerá a forma de gerir o clube e as relações deste com as outras entidades do futebol”. No fundo, “deixou de existir uma voz forte, que defendia os interesses do clube em todas as situações, custasse a quem custasse. Os treinadores passaram a estar quase abandonados à sua sorte no que diz respeito à produção de um discurso oficial para o exterior”.
Os cacos estão à vista. Mas como acabou o que era doce?
Para o jornalista e comentador desportivo Bruno Prata, nota-se a “falta de uma estratégia coerente e adequada aos novos tempos”. Ou seja, “o FC Porto contratou Lopetegui e deu-lhe uma autonomia que nunca tinha dado a nenhum treinador, nem a Mourinho. Ele mudou tudo, acabou com a forma de trabalhar que vingava no Dragão há anos (Periodização Tática), impôs novos processos de treino e até trouxe de Espanha um novo responsável pela formação. Ao mesmo tempo, foi-lhe dada carta-branca para contratar jogadores (caros), que nalguns casos chegaram por empréstimo, complicando assim o modus operandi que passava pela valorização e imediata venda das principais figuras”, explica o autor da coluna Ludopédio no diário Record. “Ora, ano e meio depois”, assinala, “Lopetegui foi despedido e o FC Porto esteve um mês sem treinador, percebendo-se que não tinha sequer um plano B preparado. Peseiro recebeu esta pesada herança e está a ser mais vítima do que réu”.
Voltemos à mística. Que, segundo os dicionários, tanto pode ser um mistério, uma razão incompreensível, uma coisa catita ou uma miscelânea. No FC Porto era o quê? “Tem de haver referências do clube, formadas nele, que interpretem, em campo, essa vontade indómita e arrastem os outros. E onde estão?”, pergunta Álvaro Magalhães. “Essa era uma missão do grandioso projeto Visão 611 (nomes pomposos sabem eles arranjar, mas o nome nem sempre é a coisa) que funciona desde 2006 e prometia «rendimento, desenvolvimento e recrutamento”». Diziam eles que os frutos chegariam seis anos depois. Mas estão muito atrasados”, ironiza o escritor, adepto portista. José Manuel Ribeiro tende a concordar, embora com nuances. “É verdade que vender todas as referências, como o FC Porto fez várias vezes em seis anos, atenta contra a identidade das equipas”, nota. “Mas a principal razão dos problemas é a instabilidade provocada pela fuga dos principais jogadores e pela alternância de treinadores”. Exemplos? Bastam dois: “Gaitán está no Benfica há seis épocas; Brahimi está há duas no FC Porto e já terá de ser vendido”.
Os sinais estavam lá no início da época. Ou não estavam? “Desde logo se percebeu que o plantel era desequilibrado, mas as contratações efetuadas não o melhoraram, sendo que ainda saíram jogadores que podiam ser úteis”, refere João Nuno Coelho. “Ao mesmo tempo, o clube tem dezenas e dezenas de jogadores sob contrato, o que representa uma enorme despesa. Qual a razão para se ter mais de 10 guarda-redes seniores contratados?”, questiona o sociólogo que ajudou a fundar, há quase 30 anos, a equipa amadora Portus 87, em homenagem à conquista da primeira Champions em Viena.
Vai longe o calcanhar de Madjer. Estão à vista, isso sim, os calcanhares de Aquiles, ao jeito de fratura exposta. “Na última época, o FC Porto foi menos certeiro na escolha dos jogadores e o seu maior investimento de sempre (Imbula) até redundou num falhanço desportivo desastroso. Não tem hoje um «central» de verdadeira classe, ao contrário do que era hábito, não encontrou substituto credível para Óliver e ter Aboubakar e Suk é muito diferente do que ter Falcão, Lisandro ou Jackson Martinez, entre outros. Mesmo a aposta em Casillas, se descontarmos as vantagens em torno do merchandising, é discutível”, afirma Bruno Prata.
Para detetar erros na construção de uma equipa nem sempre são precisos especialistas. Às vezes basta o coração de um adepto e a metáfora de um escritor: “Quando uma casa não é bem construída, um vento mais forte pode derrubá-la. Foi o que aconteceu”, ilustra Álvaro Magalhães, como se explicasse o óbvio às criancinhas. A narrativa, neste caso, consegue ler-se à distância de qualquer lugar na bancada: “O plantel mais caro de sempre é também um dos piores de sempre em qualidade e está cheio de crateras. Custa a crer que na fase decisiva da época, só havia um central disponível (isto depois de terem cedido Lichnovsky e Diego Reyes). Nem planear souberam. E todos os centrais juntos não chegam para fazer um dos antigos centrais do Porto, a quem chamávamos patrão da defesa. Mais: nunca houve um criativo, capaz de fazer a posição 10, nem um bom ponta-de-lança, o que é inadmissível numa equipa deste nível. E, já agora, também tinha ajudado um guarda-redes menos mediático e que vendesse menos camisolas, mas fosse mais fiável”, sublinha Álvaro Magalhães. A solução imediata pode, pois, ser um neologismo: “Talvez se “deslopetegarem” o plantel e contratarem um treinador à altura da tradição do clube”, sugere o escritor.
Da relva aos gabinetes, há outros corredores. Também túneis e buracos que parecem elefantes na sala. “A situação financeira periclitante complicou ainda mais a relação com os fundos, que em função disso conseguem posições dominantes e contratos quase leoninos”, refere Bruno Prata. Uma análise minuciosa dos relatórios e contas permite ainda perceber as recompensas elevadas que os empresários acabam por merecer”, uma das matérias, de resto, que costuma lançar gasolina nos ânimos portistas quando tudo já arde. E os mitos, também são imolados? “Se há um fim visível é o do mito da superestrutura do clube, que era apontada como a causa maior da supremacia portista. Daí que qualquer jogador ou treinador que chegasse se arriscasse a ser campeão, como se dizia”, recorda Álvaro Magalhães. “Mas o futebol mudou e eles [os dirigentes] nem por isso. Perderam eficácia ou perderam-se noutros negócios. Só sabemos que deixou de ser uma vantagem, pelo contrário. O que funcionava já não funciona. Emperrou. E aqui estamos nós, a assistir ao seu emperro”.
Há Dragão para as curvas?
Emperro ou enterro? Calma, por enquanto as notícias da “morte” do FC Porto tenderão a ser sempre exageradas. Mas o caminho é estreito: “O remédio será, com certeza, dar um passo atrás e arranjar maneira de não esventrar os onzes época sim, época não. Por passo atrás, quero dizer uma Braguização: voltar à recolha dos melhores do campeonato interno, com um ou outro investimento externo”, sugere José Manuel Ribeiro, sem dispensar, contudo, uma advertência: “O FC Porto já tentou isso, em 2013/14, e esbarrou na super-equipa que o Benfica montou nessa época. Para além disso, houve erros nalguns reforços e na constituição de plantéis, mas não tenho a certeza de que déssemos por ela se esses nomes se tivessem integrado, discretamente, numa equipa já montada e senhora de si. Começar do zero também significa menor margem de erro para as asneiras. No fundo, elas não são assim tão diferentes das que o Benfica e o Sporting fizeram. Há sempre um Taraabt ou um Teo Gutierrez”, exemplifica o diretor do diário O Jogo.
De facto, adverte João Nuno Coelho, “ninguém pode dizer que é simples gerir um clube com a dimensão do FC Porto nos dias de hoje, num futebol e num mercado periféricos como o português, conseguindo que o clube continue competitivo a nível nacional e, principalmente, a nível internacional”, esclarece. “Mas um bom começo para a mudança seria garantir que todos os atos de gestão têm apenas o interesse do clube como objetivo final”. É aí que o dragão torce o rabo? “O modelo de negócio do FC Porto nos últimos anos passou pela aquisição de talentos emergentes e pela sua promoção e posterior venda com elevados lucros, fundamentais para atenuar os orçamentos sempre deficitários. Foi sempre uma aposta de alto risco e que não impediu a inflação galopante do passivo da SAD”, espelha Bruno Prata. “Alguns artifícios contabilísticos, como a transferência do estádio para a SAD, foram permitindo disfarçar a realidade, mas esse tipo de expediente está praticamente esgotado e o FC Porto terá de se readaptar à realidade. A dúvida é se o irá fazer ainda no tempo de Pinto da Costa, que se prepara para mais um mandato, ou se irá continuar a empurrar a crise com a barriga.”.
Vai o dilema sobressaltar de vez as mentes dos responsáveis portistas ou teremos Pinto da Costa, na fase descendente do seu percurso, a entregar a sua veia poética, outrora de rasgo, a uma coletânea melancólica e saudosa, ao jeito do “Só”, de António Nobre?