“Está a falar com um homem que, apesar de lhe terem feito muito mal aos sonhos, quer ir para debaixo da terra nem que seja com dois por cento dos sonhos que teve. Vi coisas muito boas e belas na minha vida. Coisas absolutamente superiores”.
Domingo, 3 de março de 2019.
Um amigo comum, Ribeiro Cardoso, estaciona o carro defronte do restaurante Cataplana da Gina, em Campo de Ourique. É noite, pouco passa das 21 horas. A porta do lado do copiloto abre-se, lenta, e Carlos do Carmo, então com 79 anos, levanta-se e sai devagar, amparando-se no automóvel e no meu braço, esforço que parece hercúleo. Está debilitado, mas bem-disposto. E pronto para uma noite de boa conversa, sem a ditadura do relógio.
Combinara-se jantar num local afetivo.
Durante semanas, eu insistira na importância de falarmos, pois sem o testemunho dele, o meu livro sobre as relações clandestinas de Amália Rodrigues com a oposição à ditadura e a forma como lidou com a revolução ficaria manco. Ao que sei, não precisou de ponderar muito: era mais a saúde que o preocupava e lhe retirava ânimo para conversas que se adivinhavam longas.
Durante quase duas horas falámos de tudo: do seu percurso artístico e pessoal, das amizades e inimizades dele, de ditadura e liberdade, de política e dos políticos que admira (citou alguns), do “irmão” José Carlos Ary dos Santos, de escritores e poesia. Eu crescera a ouvi-lo e disse-lhe que levaria para uma ilha deserta Um Homem na Cidade, um dos discos da minha vida. Comoveu-se.
Mas Amália Rodrigues era o tema principal. E a ele não lhe era fácil admitir a relação turbulenta, as ciumeiras mútuas, as invejas que se atravessaram na relação entre os dois. Não era o seu tema preferido, surpreenderia que o fosse. O mesmo diria Amália, certamente. Mas, admitiu, “não guardo memória de raivas”. Naquela noite, Carlos do Carmo fez contas a essa parte da vida. E as “pazes” com a mulher que, tal como ele, nunca deixou que o fado fosse atirado para o caixote do lixo da História. “Acho injusto dizer que ela foi a cantora do regime. O regime é que foi suficientemente esperto para aproveitar a voz do século. Essa justiça tem de ser feita porque ela era uma voz excecional. Também tenho uma dívida para com ela: quem foi que começou a divulgar o fado lá fora? Eu fui a seguir, depois apareceu esta geração. Quem é que abriu a porta? Essa dívida eu tenho”, reconheceu, concluindo. “A morte da Amália foi, em termos de reconhecimento, a coisa mais significativa que vi na vida. Nunca vi nada igual. Ela foi a maior voz do século XX. As circunstâncias e a inteligência dela resultaram nesse animal feroz e foi extraordinário esta mulher ter existido no fado”.
Resgatadas a essa noite, aqui ficam algumas das últimas memórias de Carlos do Carmo, em parte inéditas.
Era uma vez o fado
Eu fiz a escola primária, o liceu Passos Manuel e morava no Bairro da Bica. O pai, felizmente, mandou-me para um dos maiores colégios do mundo, na Suíça. Imagine o que acontece quando se encontra num local onde as pessoas dizem o que pensam e os jornais escrevem o que querem. Quando voltei, estava estupefacto. Mas não tive tempo de assimilar. O meu pai morreu em 1962, eu tinha 21 anos, a minha mãe não ia poder gerir O Faia, era a estrela da casa. Demos sequência à casa de fados, estive lá 20 anos, com muito sucesso. Quando foi o 25 de Abril, não fiz nenhuma censura, mas fui chamando artista por artista, e dizendo: “Isto é muito pobrezinho, não deves cantar”.
Fado perseguido I
A memória operária do fado era conhecida de muito poucas pessoas a seguir ao 25 de Abril. Eu tive sorte por causa do meu pai. Ele tinha sido livreiro e tinha livros sobre fado. Vouu agora gravar um fado, de um homem chamado João Black, fadista anarcossindicalista, que, em conjunto com o Avelino de Sousa, ia até ao Alentejo cantar o fado como quem vai organizar uma missa, isto nos anos 30.
Depois isto foi amolecendo. A censura fez uma parte e o medo fez a outra. Não se podia cantar um fado sem ser visto pela censura. Isso limitou muito as pessoas. Era quase um hino à pobreza. Mesmo nessa altura, nunca fui muito ligado a esse fado. E quando comecei a cantar fui-me socorrendo do reportório que havia na altura. Um dia tive uma surpresa magnífica. Canto um fado chamado Por morrer uma Andorinha e um dos velhos presos comunistas disse-me que era uma espécie de hino entre eles.
Fado perseguido II
Não é invenção dizer que o fado foi perseguido a seguir ao 25 de Abril, a vários níveis. Mas eu sou a última pessoa que deve falar disso, pois não fui perseguido. Tinha uma casa de fados [O Faia]. que era uma espécie de mostrador e as pessoas iam ali e eu não lhes perguntava se eram de esquerda ou se eram de direita. Procurei sempre manter um certo equilíbrio porque era uma casa comercial.
Cantar era sonhar
Se há alguém que não se deve queixar sou eu. Seria ingrato se o fizesse. Toda a minha vida artística é feita de coisas boas, de processos e desafios. Chamaram-me sempre maluco, cada disco era uma loucura, mas é assim que eu gosto. O meu reportório é o de um gajo maluco. O 25 de Abril teve muita importância na minha cabeça porque arejou muito, contribuiu muito para o ato de sonhar. E cantar era um ato de sonhar.
Um Homem na Cidade
É óbvio que, ao fazer Um Homem na Cidade, a coisa estalou. E fazíamos coisas interessantes com o Ary, com o Martinho da Assunção, coisas diferentes, que tinham a ver com a vida, a paixão real pelo fado, não uma paixão passageira, que só quem gosta muito de fado pode entender. O Ary tinha um grande respeito pelas pessoas mais velhas, uma certa ternura, e deixou “n” fados a “n” fadistas mais velhos nas casas de fado onde esteve. E as pessoas cantavam isso tranquilamente. Ele tinha esse culto. Nós conjugávamos muito bem essa maneira de sentir o fado. Sem elitismos. O que nós estávamos a respirar era liberdade.
Ary dos Santos I
O pai do [primeiro-ministro] António Costa detestava fado, mas o António disse-me que, graças ao Um Homem na Cidade, passou a gostar de fado. Aconteceu a muitas pessoas. Havia liberdade. Quando a gente pensa no que o Ary escreveu na Nova Feira da Ladra: “Na nossa feira da ladra já não há ladrões no escuro”. Isto é muito à frente. Ele está a falar de liberdade. Muitas vezes tinha de o travar, ele queria disparar para canções de intervenção. E eu dizia: “Zé Carlos, calma, eu sou um fadista. Não sou um cantor de intervenção. Há uma forma de intervir no fado, mas não assim”. E ele, que se intitulava “tia velha” e nos chamava “sobrinhas”, dizia: “Ah, a sobrinha está a ficar muito reacionária”. Lidar com o feitio dele, que não era fácil, mas foi maravilhoso.
Ary dos Santos II
O testamento dele foi feito a conversar com a minha mulher, todos os dias. E fazendo perguntas: “Judite, o que achas se eu fizer isto e aquilo?”. Ele deixou tudo o que era material, eletrodomésticos, tudo, à empregada açoriana. Deixou toda a roupa ao PCP. A gente chegava à Soeiro Pereira Gomes e havia gajos vestidos de alpaca…E no final, ele tinha quatro ou cinco pratas da avó e deixou cada uma destinada a cada amigo. Nós temos um açucareiro. Com o dinheiro que tinha, perguntou à Judite se achava bem comprar uma peça de ouro para um companheiro de quem ele gostou muito. Tudo feito com elevação e dignidade.
Fernando Lopes Graça
Para mim, não foi complicado defender o fado. Se eu cantava nas festas e nos comícios do PCP, estava completamente à vontade. Era muito claro para as pessoas que não pretendia nenhum cargo, nenhuma benesse. Portanto, sentia-me à vontade. O que me transtornava em relação ao fado era a ignorância das pessoas. E resolvi isso com o Fernando Lopes Graça. Ele era genial, mas era o “líder” de quem estava contra. Um dia estamos na embaixada da Bulgária, ele já estava bem bebido e queria ir para a Rua da Misericórdia para o coro de não sei quê… Fazia parte do seu trabalho. Ofereci-me para lhe dar boleia, ele entrou no meu carro e no caminho diz-me assim: “Você quem é?”. E eu: “Sou o Carlos do Carmo, o fadista”. E ele: “Oh, está do nosso lado, já não é mau”. Isso encetou uma relação e começamos a discutir. E tive a ajuda de um amigo precioso que foi o José Cardoso Pires. Que também era amigo dele e frequentador do fado, da boémia, do Faia, um gajo inesquecível. O Zé pegou no Lopes Graça e levou-o a uma sessão de fados da pesada – Fado Corrido, Fado Menor, Fado Mouraria – e o Lopes Graça saiu de lá fascinado. “Mas isto é que é o fado?”, perguntou ele. O Zé Cardoso Pires disse que sim. “Ah, mas isto é bom”. E pronto, arrumou-se isso. Sempre que estávamos juntos era uma coisa encantadora. “Então maestro, já está convertido?”. E ele: “Ó homem, às vezes a gente engana-se sem querer”.
Também silenciado
Antes do 25 de Abril cantava fado, mas não o choradinho, a lamechice, o estímulo da pobreza e da pequenez. Senti o peso do carimbo comunista depois, isso sim. Estive cinco anos sem cantar na RTP. Foi a altura em que comecei a cantar no estrangeiro. Se me perguntar se me lembro das pessoas que me fizeram isso, lembro-me. A algumas delas até lhes falo muito bem. Mas coitadas, fazem dó.
Foi o Daniel Proença de Carvalho que me resgatou para a RTP. Telefonou para minha casa e disse: “Ó Carlos, isto é uma vergonha, você não vem aqui cantar há não sei quantos anos”. Convidou-me, pôs-me a falar com a Maria Elisa e fizemos um programa.
Álvaro Cunhal I
Tenho os desenhos da prisão do Álvaro Cunhal dedicados por ele aos meus quatro netos. Quando assinou o primeiro, para o Sebastião, disse: “Você está a arranjar-me aqui um petisco… É que depois vêm os outros netos e eu não posso deixá-los para trás”. Então eu ia à sede do PCP perguntava se ele estava, se me podia receber, levava o desenho, e ele assinava.
Álvaro Cunhal II
Já não lhe sei dizer quantas vezes estive doente. E numa das vezes estive no Hospital Santa Maria, muito mal. O Álvaro Cunhal ligava todos os dias para a minha mulher, Judite. E uma das vezes disse: “Não é preciso dizer nada porque tenho lá gente amiga e sei como é que ele está”.
Amália e o PCP
A Amália dava dinheiro para as famílias dos presos políticos do PCP que estavam em dificuldades, pois os chefes de família estavam presos. Isto é um facto. Sei isso através do meu querido amigo Rogério Paulo, que era quem ia buscar o dinheiro a casa dela. O Rogério gostava de fado, dava-se muito bem com ela e ela sabia que ele era comunista. Ele contou-me isto com a maior naturalidade, não queria que eu soubesse das coisas por outros. Mas só soube depois do 25 de Abril.
PCP
Não se cospe na sopa. Não tenho razões para criticar alguém que tenha sido do PCP e hoje não seja. As pessoas fazem as suas opções, as suas escolhas. Assiste-me é o direito de intimamente ficar triste se a pessoa passa a falar a linguagem oposta. Eu sinto-me à vontade, fiz as campanhas, ia para Aveiro, Fafe, etc. Curiosamente, o tempo mostrou que os mais sectários foram aqueles que mais me dececionaram. Mas não faço qualquer julgamento. Se eu pertencesse ao PCP, diria algo mais, mas digo apenas que me entristece. Pessoas que eram de grande voluntarismo e, afinal…
Fado património
Sabe quanto tempo demorou a preparar a candidatura do fado? Seis anos e meio. Foi de tal ordem e de tal rigor que quando foi apresentada deram-na como exemplo de como se deve apresentar uma candidatura. Foi automaticamente aceite. E isto não parou, continua-se à procura. O Museu do Fado é uma máquina de busca, de interesse, de envolvimento. Ali trabalha-se a sério. Se quiser saber a cor das cuecas do Alfredo Marceneiro, em 1932, sabe.
Os sonhos e o Fim
Está a falar com um homem que, apesar de lhe terem feito muito mal aos sonhos, quer ir para debaixo da terra nem que seja com dois por cento dos sonhos que teve. Vi coisas muito boas e belas na minha vida. Coisas absolutamente superiores.