Nunca foi tão fácil chegar a citações inspiradoras, lapidares, motivacionais e à medida de quem as procura. O problema é que também nunca foi tão fácil cair em enganos e amplificá-los, partilhando pelo mundo frases atribuídas a autores que nunca as disseram ou as escreveram. A internet tornou-se uma poderosa máquina não “de emaranhar paisagens”, citando um já clássico texto poético de Herberto Helder (que, por sinal, é construído a partir de um conjunto de citações…), mas de emaranhar frases e autorias. “A internet não criou o problema, apenas multiplicou exponencialmente a divulgação de citações e estórias erradamente atribuídas”, diz à VISÃO Onésimo Teotónio Almeida, o académico e escritor açoriano há muito residente nos EUA, mas sempre atento às pequenas e grandes histórias da literatura portuguesa.
Pobre Pessoa
A principal vítima de apócrifos (frases que não são dos autores a que são atribuídas, citações falsas) na nossa literatura parece ser Fernando Pessoa. Como se alguns heterónimos desconhecidos tivessem sobrevivido à morte do escritor, em 1935, e espalhassem, ainda por aí, a sua inspiração (ou falta dela). Uns versos, em particular, têm-lhe sido atribuídos um pouco por toda a parte (epígrafes, graffitis e, claro, blogues e redes sociais): “Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou construir um castelo.” Quem está mais familiarizado com o estilo do poeta e seus heterónimos torce o nariz. Mas, aparentemente, há muita gente que não está nada familiarizada com o assunto… As atribuições erradas são tantas que existe uma página no Facebook (Apócrifos de Fernando Pessoa) com o único objetivo de denunciá-las. Pessoa nunca escreveu “Existe no silêncio, uma tão profunda sabedoria que às vezes ele se transforma na mais perfeita resposta”; Pessoa nunca escreveu “Conserva a vontade de viver. Não se chega a parte alguma sem ela”; Pessoa nunca escreveu “O importante pra mim é saber que eu, em algum momento, fui insubstituível e que esse momento será inesquecível.”
Mas, sejamos justos: a internet é tão poderosa que podemos dizer que, ao mesmo tempo que é a principal responsável pela ampliação dos erros, também é a melhor ferramenta para os descobrir, denunciar e divulgar. O autor da tal frase sobre as “pedras no caminho” − que, por misteriosos desígnios, foi muitas vezes acrescentada a um poema de Augusto Cury, resultando num híbrido erradamente atribuído a Pessoa −, um brasileiro que assinava o seu blogue (Por um Punhado de Pixels) como Nemo Nox, escreveu em março de 2006 um post sobre o assunto: “No início de 2003, chateado com os obstáculos que encontrava e tentando ser um pouco otimista, escrevi aqui estas três frases: ‘Pedras no caminho? Eu guardo todas. Um dia vou construir um castelo.’ Não pensei mais nisso até que recentemente comecei a receber emails pedindo que eu confirmasse ser o autor do trechinho. Aparentemente, o trio de frases tomou vida própria e espalhou-se pela internet lusófona com variações na pontuação e na atribuição da autoria. (…) Cheguei eu mesmo a duvidar da minha autoria. Poderia ter cometido um plágio inconsciente, recolhendo da memória alguma coisa lida no passado e achando que se tratava de material original? Revirei os poemas pessoanos em busca de pedras e castelos mas não consegui encontrar qualquer coisa remotamente parecida ao trecho em questão. Vasculhei os heterónimos e tampouco achei o guardador de pedras.(…) Enfim, convenci-me, até que provem o contrário, de que fui eu mesmo quem escreveu as tais linhas. Outra coisa engraçada é que nem me sinto orgulhoso de ter escrito isso, parece-me hoje até um pouco piegas, como aqueles cartazes motivacionais com fotos bonitas e frases otimistas. Até me admiro de não terem atribuído a autoria ao Paulo Coelho.” E termina: “Atribuições incorretas? Eu guardo todas. Um dia vou escrever uma tese.”
Uma maravilha e um horror
Claro que é mais fácil perpetuar erros com autores que já não estão cá para se defenderem. Mas os vivos não estão imunes ao fenómeno, e a autodefesa não é tarefa fácil… O escritor brasileiro, mais reconhecido pelas suas crónicas breves e irónicas, Luís Fernando Verissimo é uma vítima recorrente de falsas citações. No seu caso, houve mesmo uma crónica inteira (intitulada Quase) que foi fazendo o seu caminho pela internet até chegar, mesmo, a ser impressa em papel como se fosse sua (é de uma tal Sarah Westpahl). Em 2005, Verissimo escreveu, nas páginas do jornal Zero Hora, uma crónica sobre o assunto − que, muito apropriadamente, começava assim: “A internet é uma maravilha, a internet é um horror.” “Já li vários textos com assinaturas improváveis na internet, inclusive vários meus que nunca assinei, ou assinaria”, escreveu. “O incómodo, além dos eventuais xingamentos, é só a obrigação de saber o que responder em casos como o da senhora que declarou que odiava tudo o que eu escrevia até ler, na internet, um texto meu que adorara e que, claro, não era meu. Agradeci, modestamente. Admiradora nova a gente não rejeita, mesmo quando não merece. Tenho sido elogiadíssimo pelo Quase. Pessoas me agradecem por ter escrito o Quase. Algumas dizem que o Quase mudou suas vidas. Uma turma de formandos me convidou para ser seu patrono e na última página do caro catálogo da formatura, como uma homenagem a mim, lá estava, inteiro, o Quase. Não tive coragem de desiludir a garotada. Na internet, tudo se torna verdade até prova em contrário e como na internet a prova em contrário é impossível, fazer o quê?” E a cereja no topo deste amontoado de mal-entendidos: “No Salão do Livro de Paris, na semana passada, ganhei da autora um volume de textos e versos brasileiros muito bem traduzidos para o francês, com uma surpresa: eu estava entre Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e outros escolhidos, adivinha com que texto. Em francês ficou Presque.”
Injustiças
Como tudo começa? Na maior parte dos casos, é difícil de saber. Mas é certo que muitos mal-entendidos são bem anteriores à internet e que podem ter diversas motivações, mais ou menos casuais, com má-fé ou inocência. Numa conferência na Suécia, durante a guerra de libertação à Argélia, um estudante argelino, irritado, confrontou Albert Camus com a sua suposta indiferença. O escritor francês nascido em Orão, Argélia, em 1913, terá respondido: “Neste momento lançam-se bombas sobre os elétricos de Argel. A minha mãe pode estar num desses elétricos. Se é isso a justiça…, eu prefiro a minha mãe.” Para a posteridade ficou uma frase simplificada, e com sentido diferente, que ainda lhe é atribuída muitas vezes: “Entre a justiça e a minha mãe, prefiro a minha mãe.” Ele nunca a disse. E também Voltaire nunca proferiu uma das citações que mais vezes lhe é atribuída (muito recordada nos dias que correm): “Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo.” Até o pode ter pensado, mas quem escreveu essa frase, precisamente para explicar a atitude do pensador e escritor francês, foi uma sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall, no início do século XX (escreveu, no livro The Friends of Voltaire: “’I disapprove of what you say, but I will defend to the death your right to say it’, was his attitude now”). Neste caso, a célebre frase apócrifa não trai o espírito autor, podemos dizê-lo. Mas muitas vezes, demasiadas, isso acontece.
“A citação tem triplo poder mágico: legitima, enobrece e desresponsabiliza”, escreve Rui Zink à VISÃO a partir de Calcutá, onde participa num festival literário. “Sempre houve citações-boato (assim começavam muitos linchamentos) mas o corta-e-cola de agora tornou tudo mais fácil. Gostamos de alguém? Colamos-lhe bela frase. ‘Avante, camarada’, assinado: Prof. Cavaco Silva. Não gostamos? Bota-lhe frase odiosa. ‘Detesto portugueses’, assinado: Maria Vieira”, acrescenta, em tom irónico.
Clarice, a “mais maltratada”
Na praga de citações na internet, muitas vezes em sites construídos só para esse fim, acontece muitas vezes que uma qualquer frase, inspiradora ou anedótica, que até já ouvimos em qualquer lado e faz parte do imaginário coletivo, é atribuída a imensas pessoas. Um exemplo entre muitos: “Algumas pessoas sentem a chuva. Outras apenas ficam molhadas” é uma frase que aparece atribuída, pelo menos, tanto a Bob Marley como a Bob Dylan. Quem a disse primeiro? Nenhum deles. O site norte-americano QI (Quote Investigator, uma espécie de Sherlock Holmes à procura das origens de todas as citações) pesquisou e concluiu que quem a popularizou primeiro foi o cantor country e ator Roger Miller num programa de televisão, em 1972. Em Portugal, o site Citador.pt é dos mais populares. Foi lançado em 2003 por Paulo Neves da Silva, também autor de vários livros com citações.“Na altura não havia nada do género na internet. Senti que era interessante partilhar”, diz à VISÃO. “O tempo das pessoas é limitado, não dá para ler tudo. Por outro lado, há autores e livros pouco divulgados que, desta forma, podem chegar a mais leitores, nem que seja de forma parcial. E a ideia é essa: dizer às pessoas que vale a pena lerem e refletirem sobre este autor, esta frase, este poema, este livro, mesmo quando eu próprio estou em desacordo com o sentido da frase”, acrescenta. Paulo sabe que nem todos os sites do género (e há mesmo muitos…) são de confiança: “Há muitos que são pouco confiáveis, sem validação. Procura-se ganhar alguns trocos com anúncios… Na maior parte dos casos, as pessoas colocam citações sem se preocuparem com a autoria ou o rigor.” E, bom conhecedor do meio, afiança: “A autora que vejo mais maltratada nas citações, com muitas delas inventadas, é a [brasileira] Clarice Lispector. Talvez porque apresenta, nas crónicas, uma escrita mais terra a terra, que alguns confundem com uma escrita corrente, vulgar, fácil de imitar.”
A arte literária da citação
No outro extremo da negligência grosseira na atribuição de autorias encontramos a arte da citação, ou a citação como arte. Há escritores que potenciam mal-entendidos, misturando conscientemente realidade e ficção. Onésimo Teotónio Almeida recorda um caso passado com o escritor açoriano Daniel de Sá. Dele, recorda Onésimo: “Tinha uma rara capacidade de imitar a escrita de escritores portugueses famosos.” Entre amigos divulgou, a certa altura, dois belos sonetos escritos ao estilo de Natália Correia (Auto-Retrato Alexandrino e Ao Amor). Foi com surpresa que Daniel os encontrou reproduzidos em vários sites, nesse mundo sem fronteiras chamado internet, como se de originais de Natália Correia se tratasse…
O catalão Enrique Vila-Matas é um dos grandes cultores da arte da citação na literatura atual. Usa-as, livremente, e não garante nem o seu rigor nem a sua autenticidade. “Trabalho com as citações como se fossem uma sintaxe para construir o que quero dizer. Na metade das vezes, as citações são inventadas, ou transformadas para dizer o que quero dizer; ou seja, metade delas são falsas”, disse em entrevista ao jornal Folha de São Paulo. Exemplo? No seu mais recente romance, Mac e o seu Contratempo, a bela frase “escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos” é atribuída a Nathalie Sarraute; em Paris nunca se Acaba, a mesmíssima citação é de Marguerite Duras. Por email, Vila-Matas explica-se à VISÃO: “De Nathalie Sarraute não é, certamente. O que acontece é que a personagem Mac se engana, como é um principiante na escrita faço com que se engane. Podia ser de Marguerite Duras, mas a frase de Duras, do seu livro Escrever, é mais complexa: ‘Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos − só o sabemos depois − antes.’ É uma frase algo complicada por isso simplifiquei-a.” Liberdade acima de tudo.
Em Portugal, atualmente, Afonso Cruz é um dos mais destemidos utilizadores das citações como elemento literário. Não hesita em confessar que muitas das citações presentes na sua Enciclopédia da Estória Universal, já com vários “volumes”, pertencem ao mundo da ficção, mesmo quando são acompanhadas de nomes bem conhecidos.
A propósito deste mundo de erros e enganos, Onésimo recorda-nos uma cena do filme Annie Hall, de Woody Allen. Passa-se numa fila para comprar bilhetes de cinema. Atrás da personagem de Woody Allen alguém fala, em voz muito alta e petulante: cita abundantemente as teorias do filósofo e teórico da comunicação Marshall McLuhan. Irritado, Woody Allen afasta-se um pouco e vai buscar o próprio McLuhan (então com 66 anos) que desmente o presumido professor: “Não sabe nada sobre o meu trabalho, é absolutamente incrível como conseguiu tirar um curso para dar aulas.” Woody Allen vira-se, então, para a câmara e diz aos espectadores: “Ah, se a vida fosse assim…” Não é.
*Com Luís Ricardo Duarte