Estamos em Torres Vedras, na primeira noite de festejos carnavalescos. Nas ruas, desertas, circula-se sem alarido, não há operações stop, filas para a casa-de-banho ou cerveja a ser derramada à passagem. Mas, no quartel general do Carnaval em Casa trabalha-se afincadamente para que esta data não passe despercebida aos torrienses, habituados a gozar a folia desde o berço – ou não fosse este o carnaval mais português de Portugal. Desde 1923, só houve um ano (1984) em que Torres, de luto por causa de umas graves cheias, não festejou como devia ser. O ano de 2021 ficará também para a História.
Não podemos dizer onde se localiza esta espécie de bunker, para que não se faça fila à porta para entrar. Na realidade, aos foliões só se pede que se mascarem, se liguem a um dos cinco canais disponíveis (Youtube, Site, Instagram, Facebook ou Zoom), arranjem uma bebida e muita disposição. A música – brasileira, que mais poderia ser – há de animá-los noite dentro, até que o último resistente caia para o lado, no sofá. Entretanto, no Whatsapp desta organização já chegaram várias fotos para o concurso de máscaras do dia seguinte, um dos pontos mais altos das celebrações.
Há uma semana e meia, quando percebeu que não ia haver qualquer tipo de festejo na cidade, Sérgio Lopes, 45 anos, diretor da rádio ON FM, juntou-se ao designer e dj Manuel Mourão, 37 anos, para, usufruindo da experiência profissional de cada um, criar um intensa programação online, sob o chapéu #Carnavalem casa. “Em Torres, não há como escapar a esta época, é um sentimento, um modo de vida”, dirá, enquanto come o frango assado que encomendaram para o jantar da curta equipa que terá uma longa noite.
A movida normalmente começa em dezembro, com o Carnatal, e prolonga-se, com assaltos todos os fins-de-semana, até à data primordial, que calha sempre entre fevereiro e março. Existem seis grupos organizados que se dedicam a promover a festa durante o ano todo, além dos outros informais.
Apesar desse sentimento, que se estende a toda a população, a Câmara local não apoiou esta iniciativa. Então, tiveram de se virar com voluntariado e venda de kits folião em casa, a 15 euros cada, compostos de uma bandeira, um crachá, uma t-shirt, um autocolante e um livre-trânsito para a discoteca Túnel para o carnaval de 2022. Entretanto, nas redes promoveram uma moldura para as fotos de perfil, com o slogan Carnaval em Casa. “Houve seis mil pessoas a aderir imediatamente”, esclarece Sérgio.
No escurinho do cinema
Nos cinco dias em que decorre a festa rija na cidade, que começaria ontem e só terminaria na 4ª feira, com o Entrudo, movimenta-se mais de nove milhões de euros em Torres Vedras. Os sítios para ficar esgotam em dezembro e os restaurantes não têm mão a medir, recendendo grupos e grupos de foliões, mascarados a rigor. Os mais a rigor estarão de Matrafonas e por baixo dos vestidos à dama antiga e perucas do século passado estão sempre homens. As mulheres ficam de fora destas celebrações mais organizadas, mas andam todas na rua na mesma.
Quando acabam de jantar, o pequeno grupo de organizadores senta-se na mesa dos comandos, que tem 4 computadores prestes a não terem descanso até o raiar do dia, Micael Dias, 23 anos, realizador da rádio ON FM, será o maestro de todas as plataformas. E hoje até vai ser simples, porque a ideia é fazer um set de quatro Djs, que se vão revezando na mesa dos discos – Manuel Mourão, Cenoura, Ricardo F. e Tiago Bandeira.
A emissão ainda não está no ar, mas já há “no escurinho do cinema…”. Rita Lee sai das colunas montadas no cenário que há de aparecer em casa dos foliões virtuais e não se consegue evitar um pezinho de dança e o trotear da canção. Vêem-se enormes bonecas ao estilo Matrafona junto à mesa de mistura, além de plumas, flores, cartas de jogar, máscaras de olhos e serpentinas a cair de outra parede lateral, onde também estão manequins vestidos com os trajes dos grupos carnavalescos.
“Vinte minutos para começar!”, avisa Sérgio, cigarros e copos à mão, e de olhos postos no ecrã, a uma distância considerável do palco, chamemos-lhe assim. Percebe-se que daria tudo para andar na rua, com os amigos, com em todos os anos que se lembra.
Com o aproximar da hora, os djs mudam de roupa, só da cintura para cima, que é o que se vê – de pirata, índio, rei. “Estamos cá na mesma, embora isto seja outra realidade. Se houver 10 anos de confinamento, continuaremos a fazer a festa online”, garante Ricardo Ferreira, com 10 anos de experiência a tocar no Carnaval de Torres, todas as noites, até ser quase hora do almoço.
Quando Sérgio faz a contagem decrescente, “10, 9, 8, 7…”, já há 150 pessoas a ver a emissão. Os números hão de subir ao milhar, mas a contabilidade é sempre complicada porque as plataformas são muitas e estão a emitir em simultâneo. No set, eles dão tudo, na tentativa de uma interação mais próxima da realidade – mãos no ar, mãos no coração, mãos em forma de coração. Canta-se, dança-se, salta-se, batem-se palmas, aqui, e em casa, que bem os vemos através dos quadradinhos no ecrã do computador de Micael.
Hoje sou feliz e canto, só por causa de você
O relógio nesta sala está parado nas 1h45, mas no mundo real, ou virtual, os ponteiros avançam pela noite. “Hoje sou feliz e canto, só por causa de você…” Já são onze horas e a animação vai aumentando à medida que se somam os copos de vinho e as garrafas de cerveja e os brindes. Aqui e em casa, aonde se avistam pessoas vestidas de jogador do Sporting, de palhaço, só com narizes vermelhos, de cabeleiras, com as camisas abertas, os brilhantes na cara e as luzes a dar ambiente.
É mais ou menos assim que encontramos Jorge Hilário, 53 anos, na sua pequena casa no centro histórico. Tem o computador aberto na sala e está sentado em frente a ele, com um gin cor-de-rosa num elegante copo de pé ao seu lado. Fossem estas noites normais e andaria pelas ruas, vestido de dama da corte, num fato que custa 235 euros, com o grupo a que pertence, Ministros e Matrafonas, o mais antigo do Carnaval de Torres. A filha, Catarina, 21 anos, deveria cruzar-se com ele de vez em quando, sempre que a multidão o permitisse. Hoje, estão os dois sozinhos a ver a emissão, ele de chapéu de ministro na cabeça, ela mais elaborada, de Minnie. Calçam ambos chinelos, que as meias solas são para poupar para o ano, ou assim que regressemos à normalidade.
“Consegui mentalizar-me muito cedo de que não ia haver Carnaval. Em novembro e dezembro, costumo ir aos lares da cidade levar um pouco de alegria carnavalesca a quem lá está. Este ano não fomos a nenhum. Mandámos um dvd com uma coletânea de momentos divertidos para ver se os animamos”, lembra este funcionário da Câmara de Torres Vedras.
Não podendo a vida correr de forma natural, contenta-se com o Zoom, e nem se queixa muito. “É uma ideia muito gira, dá para conviver e estarmos todos juntos, cada um em sua casa, claro.”