Durante muito tempo, o stand-up comedy era coisa “lá dos americanos”, bem estranha aos nossos hábitos, mas a moda, quando chegou, entre sorrisos desconfiados e muitas gargalhadas, veio para ficar. O fenómeno não aconteceu nos típicos clubes de comédia à americana, mas via televisão e, mais tarde, via digital. Nuno Artur Silva, fundador, há 30 anos, das Produções Fictícias (PF), recorda-se bem desse momento: “Por volta do ano 2000, houve ali uma crise de trabalho das PF nas televisões, e, como já tínhamos vários jovens humoristas a trabalhar connosco, achei que era o momento de arriscar o formato de stand-up em Portugal.” E continua: “Andei a vender essa ideia à SIC e à TVI, e foi sempre recusada com o mesmo argumento: ‘Eh, pá! Ninguém conhece estes gajos, porque é que não fazem isto com atores conhecidos?’. Passados dois anos, aparece o Levanta-te e Ri [na SIC], produzido por outras pessoas e, de um momento para o outro, o stand-up comedy de jovens comediantes, que ninguém conhecia, passou a ser a regra; o jogo virou completamente.”
Hoje, saiu definitivamente dos ecrãs: ocupa, e esgota, pequeníssimas e enormes salas de espetáculos e até é presença assídua nos festivais de verão, que antes se dedicavam só à música. Nuno Artur Silva, aos 60 anos, tem por estes dias a sua maior prova de fogo em cima de um palco a fazer… stand-up. Em Onde É Que Eu Ia?, com todas as sessões esgotadas no Teatro São Luiz, em Lisboa, e com uma digressão prometida por outras salas do País, ao lado do amigo António Jorge Gonçalves (que faz desenhos em direto), brinca com os seus falhanços e as suas conquistas. E até revela, em palco, um dos grandes segredos desta difícil arte de fazer rir uma plateia, todas as noites: “O humor é, sobretudo, uma questão de timing.”
A culpa é do digital
O exemplo de Nuno Artur Silva no São Luiz não é caso único. Nas últimas semanas, várias datas foram sendo acrescentadas a outros espetáculos de stand-up comedy, no continente e nas ilhas: do humorista português Luís Franco-Bastos ao brasileiro Fábio Porchat, passando por mulheres comediantes, como Mariana Cabral (Bumba na Fofinha), Joana Marques, Marta Bateira (Beatriz Gosta) ou a dupla Inês Aires Pereira e Raquel Tillo.
Hugo Nóbrega, fundador da empresa H2N, produtor de espetáculos de comédia há mais de 20 anos, responsável por ter trazido a Portugal o irlandês Jimmy Carr – bem como, em fevereiro, o novo solo de Fábio Porchat, e Portátil, do coletivo brasileiro Porta dos Fundos (datas ainda a anunciar) –, aponta as plataformas digitais e de streaming como as responsáveis pelo sucesso do stand-up. “Rir é transversal, mas estamos muito mais conhecedores do humor. Crescemos com os Monty Python, o Herman José, os Gato Fedorento… E a nova geração já conhece os grandes nomes britânicos e norte-americanos, como Ricky Gervais, Dave Chappelle ou Bill Burr.”
Entre 2011 e 2017, quando organizou o festival de humor The Famous Fest, em Lisboa, em que participaram nomes como Bruno Nogueira, César Mourão, Commedia à la Carte, Maria Rueff ou Eduardo Madeira, recorda que “a qualidade do cartaz não era paga só pela bilheteira, ao contrário do que acontece hoje, em que os humoristas esgotam grandes salas”. “Deram um salto de tal forma que cada um tem a sua carreira completamente afirmada, com uma estratégia muito individual e analítica”, salienta.
Quanto maior, melhor
Quando começou a fazer comédia, aos 18 anos, Luís Franco-Bastos, agora com 34, lembra-se de que eram poucas as oportunidades “para atuar ou experimentar textos novos”. “Hoje, quem quiser fazer stand-up em Lisboa consegue fazê-lo, todos os dias da semana”, aponta. “Os humoristas chegam ao público sem precisar de intermediários. Criam os seus conteúdos, disponibilizam-nos online, as pessoas gostam e depois querem vê-los ao vivo”, diz. Daí que Franco-Bastos veja “com bons olhos” este crescimento na comédia. “Nunca penso na questão em termos de concorrência. Quanto maior e mais rico for este mercado, melhor é para todos”, salienta o humorista que tem esgotado salas, desde o Peso da Régua a Lagos, com o novo solo Diogo (o seu segundo nome próprio), em que brinca, pela primeira vez, com o seu universo familiar. “Passei muitos anos a falar dos outros, chegou o momento de falar de mim. Estamos sempre à procura de alguma coisa com a qual possamos divertir as pessoas e surpreendê-las”, explica.
Com sete solos no currículo, entre os quais Cabeça Ausente (teve 56 datas, em 2018) e Na Ponta da Língua (o primeiro stand-up português na Netflix, em 2016), Salvador Martinha acredita que este boom “começou a ser construído há 20 anos, e agora toda a gente está a receber o que semeou”. Para isso, muito contribuíram as redes digitais [Facebook, YouTube, Instagram]. “As coisas mudam completamente quando os comediantes começam a ter o controlo da sua promoção e passam a trabalhar para a sua fatia. As pessoas criam o seu público no digital e, depois, os espetáculos são como que uma espécie de celebração. O público já está com os comediantes quando entra na sala, e isso é meio caminho para tudo correr bem”, aponta o humorista, que vê com naturalidade o aparecimento de cada vez mais mulheres nesta área. “Durante anos, ouvimos piadas de humoristas a contar as saídas à noite e as suas peripécias de engate. E nunca ouvimos o outro lado. Tinha de acontecer isto”, realça Martinha, prestes a estrear a peça de comédia Plim T1 – Passa Lá na Agência no fim de março.
“Grande power” das mulheres
O palco comédia, no NOS Alive, serviu de tubo de ensaio para as atrizes Inês Aires Pereira e Raquel Tillo levarem ao palco este registo. E a “fórmula” resultou. Estreado no fim de novembro, Nem a Ponta do Mindinho esgotou todas as datas, nos teatros Villaret e Tivoli, em Lisboa, e no Sá da Bandeira, no Porto, e deverá sair em tournée. Embora considerem não se tratar de um stand-up na sua forma tradicional, sonhavam ter um espetáculo com as ideias e histórias de ambas. “Adoramos fazer parte desta história do teatro e da comédia. Portanto, quando olhamos à nossa volta e vemos comediantes mulheres a partir tudo, ficamos cheias de orgulho, e dá-nos um grande power!”, confessam.
Em novembro, quando Mariana Cabral (Bumba na Fofinha) anunciava, no Instagram, o novo Suar do Bigode, agora “sem uma barriga do tamanho de Saturno” [depois de ter sido mãe de Clara], o cartaz esgotava, desde Guimarães a Albufeira, além de vários dias nos coliseus de Lisboa e do Porto. Nem as ilhas escaparam. No dia 22 de janeiro, Mariana animou Ponta Delgada, Açores, um dia depois de a amiga, a humorista e cronista da VISÃO, Joana Marques, ter levado ao rubro a capital micaelense com o espetáculo Extremamente Desagradável ao vivo. “Ajamigas esgotaram São Miguel sem uma única santa nos ténis”, escrevia Bumba, com ironia, no Instagram. Formada em Jornalismo, Mariana Cabral confessou, no podcast Que Vida é a Tua, que nunca lhe passou “pela cabeça nem comédia nem guionismo”, mas o canal de YouTube, lançado em 2013, traçou-lhe o caminho.
Também Marta Bateira, conhecida pela personagem Beatriz Gosta, admite ter andado a fugir, durante muito tempo, do stand-up, “porque tinha muito medo”: “É difícil estar uma hora e meia em palco a fazer o povo rir.” Nascida no YouTube, em 2015, com um video blog que animava as noites de domingo com “histórias sem filtro, tabus moralistas ou falsos pudores”, a personagem criada pela rapper deu o salto para a televisão e, em 2019, para o primeiro solo, Quem Acredita Vai. Quatro anos depois, tem novo espetáculo (Resort estreou-se na passada quarta, 25, no Teatro Villaret, em Lisboa), em que vai mostrar “uma Beatriz Gosta diferente, com outra bagagem”. “Fiz 40 anos e sinto que abracei outro público que a maternidade me trouxe. As mulheres têm de acreditar, enfrentar os medos e perceber que têm lugar”, sublinha. Escusado será dizer que já tem novas datas em cartaz. *Com Pedro Dias de Almeida
Pelo país fora
Onde É Que Ia?..., de Nuno Artur Silva > Teatro São Luiz, Lisboa > 2-5 fev
Suar do Bigode, de Bumba na Fofinha > Coliseu do Porto > 2 fev > Cineteatro Curvo Semedo, Montemor-o-Novo > 17 fev > Coliseu dos Recreios, Lisboa > 7-11, 25-28 fev
Extremamente Desagradável, de Joana Marques > TAGV, Coimbra > 2 fev > Altice Forum Braga > 3 fev > Palácio Congressos Algarve, Albufeira > 10 fev > Coliseu dos Recreios, Lisboa > 18-19 fev > Coliseu do Porto > 23 fev
Diogo, de Luís Franco-Bastos > Viseu > 3 fev > Mealhada > 11 fev > Leiria > 18 fev > Braga > 24 fev > Santarém > 10 mar > Lisboa > 24 mar > Porto > 25 mai
Nem a Ponta do Mindinho, de Inês Aires Pereira e Raquel Tillo > Teatro Villaret, Lisboa > 6-7, 13 fev
O Novo Stand-up de Fábio Porchat > Coliseu do Porto > 13 fev > Teatro Micaelense, Ponta Delgada > 14 fev > Coliseu dos Recreios, Lisboa > 15 fev, 19h, 22h
Resort, de Beatriz Gosta > Teatro Villaret, Lisboa > 8, 22, 28 fev, 1, 14-15 mar > Santa Maria da Feira > 15 fev > Teatro Sá da Bandeira, Porto > 14-15 abr