O alastrar do “mal branco” é incontrolável. A insólita cegueira contagiosa espalha o medo, o egoísmo, a irracionalidade e a opressão. Apenas uma pessoa, designada como “a mulher do médico”, mantém a visão e assume o papel de heroína. Em palco, portugueses e catalães rodam constantemente entre si a representação de personagens que nunca são nomeadas e que são descritas pelas relações de parentesco ou por características físicas. Uma “jangada ibérica” conduzida por Nuno Cardoso, que respondeu ao repto do Teatre Nacional de Catalunya de criarem um espetáculo em conjunto. O diretor artístico do Teatro São João pôs a hipótese de trabalhar um dos romances de José Saramago. A escolha de Ensaio sobre a Cegueira, uma das obras mais duras do Prémio Nobel, carregada de indignação, ocorreu antes de o mundo enfrentar uma pandemia. De um momento para o outro, os confinamentos forçados, a vulnerabilidade e a desumanidade narrados ganham outra ressonância.
A adaptação teatral coube à dramaturga catalã Cláudia Cedo, que descreve esta obra como “uma fábula de fôlego universal sobre a responsabilidade de ter os olhos abertos quando quem nos rodeia os tem fechados”. A cegueira é, afinal, uma metáfora da falta de solidariedade, de justiça, de diálogo, de tolerância e de respeito pelo outro que se observa na sociedade atual. A versão cénica bilingue procurou estar o mais próxima possível da linguagem e das situações narradas no livro. “Uma das coisas mais fantásticas deste Ensaio é que é tão violento e, ao mesmo tempo, absolutamente cómico na maneira como comenta o que se está a passar, e é esse o tom que procuramos não perder… Ainda hoje estamos a fazer pequenas alterações ao texto”, contou o encenador, uns dias antes da estreia. Um tom que é profundamente português. “O mundo caridoso dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos”, escrevia Saramago.
Ensaio sobre a Cegueira > Teatro Nacional São João > Pç. da Batalha, Porto > T. 22 340 1910 > 10-19 jun, qua-sáb 19h, dom 16h > €10 a €40