Vampiros e naves espaciais vão ocupar o Palácio Franchetti, que, entre 23 de abril e 27 de novembro, se transformará no Pavilhão de Portugal na Bienal de Veneza, um dos mais importantes acontecimentos mundiais no domínio das artes plásticas. A autoria é de Pedro Neves Marques. Para trás ficou a polémica em torno da candidatura preterida de Grada Kilomba – em que este projeto, sublinhe-se, não tem responsabilidade nenhuma.
Aparentemente, o título da instalação que vai representar Portugal em Veneza, Vampires in Space, tem tudo para descrever um filme de género, série B (ou mesmo Z), de uma subcategoria de Hollywood. Mas, na verdade, não são os géneros cinematográficos que estão em destaque no ousado trabalho, mas antes outras questões de género e de identidade, que aqui ganham particular relevância. Vampires in Space é o primeiro projeto explicitamente queer a representar Portugal neste contexto. Como é dito na sua apresentação: “As questões de representação trans e não binárias ganham uma visibilidade sem precedentes.”
Responsável pela proeza é Pedro Neves Marques, artista não binário, que leva as questões de género tão a sério que nos convida ao exercício de omitir os pronomes e terminações que o possam identificar como masculino ou feminino – o que, como se sabe, na língua portuguesa é particularmente complicado. No próprio texto de apresentação do projeto dá a volta à questão concedendo-se a liberdade linguística de uma terminação em “e”. Não é escritor nem escritora, mas sim “escritore”. Também será artista, poeta e cineasta, mas nos casos basta omitirmos os artigos para não criar mal-entendidos.
Perguntamos-lhe, naturalmente, como é que se descobriu não binário. Conta-nos: “Depois de um longo processo de reflexão, concluí que o género que me foi atribuído à nascença não se coaduna com o que sou.” O género oposto, explique-se, também não, embora admita que se sente mais próximo da feminilidade.
Vampiros no Espaço
O Palácio Cavalli-Franchetti, monumento histórico do gótico veneziano do séc. XVI, vai ser invadido pelas mais estranhas criaturas. A instalação narrativa de Pedro Neves Marques, representante de Portugal na Bienal de Veneza, vai apropriar-se do edifício de forma talvez inusitada. A ideia é transformar o palácio numa… nave espacial povoada por vampiros.
São três ecrãs em que se conjugam imagens em movimento com poesia confessional e ainda, no segundo andar, uma nave espacial, com o desafio de abordar questões de identidade de género, famílias não nucleares ou reprodução queer.
Pedro Neves Marques explica à VISÃO: “Na época vitoriana, os vampiros estão ligados à codificação do género e à sexualidade; nos anos 60, à emancipação feminista; nos anos 80, à sida; hoje em dia, dá-se a humanização dos vampiros.” E resume: “Interessa-me que estas imagens culturais reflitam sobre o que estamos a fazer nos nossos tempos.”
Nada disto teria especial importância não se desse o caso de as questões de género e o não binarismo serem centrais na sua obra. Aliás, essa temática, tal como a reflexão permanente sobre a ecologia e o futuro da ciência, são o cunho político da sua arte e resumem as intenções interventivas.
Este devir evidencia-se desde sempre, mas em Vampires in Space torna-se mais explícito: “Quem conhecer o resto da minha obra vai descobrir pontos em comum, porque já fiz várias reflexões sobre o género, e também outras questões, mais históricas.” Se esta é a essência do conteúdo, a forma é uma grandiosa videoinstalação, com três ecrãs em simultâneo, enquadrados na arquitetura gótica veneziana do Palácio Franchetti, em que as imagens em movimento se misturam com a sua poesia.
O SEXO DOS VAMPIROS
Pedro Neves Marques nasceu em Lisboa, em 1984, sem antecedentes artísticos na família. Os pais, de classe média-baixa, sempre se interessaram por cultura. Em criança, teve acesso, por exemplo, às exposições da Gulbenkian e a livros… “Sempre gostei muito de literatura e de arte, sobretudo de imagem em movimento, e é o que faço hoje em dia.” As artes pareceram-lhe o caminho óbvio, mesmo que não fosse no formato mais convencional. Isto, apesar de Pedro Neves Marques sempre ter gostado de pintar (e, de passagem, diz-nos mesmo que, para breve, poderá chegar alguma surpresa nessa área).
“O meu trabalho artístico estava a ficar cada vez mais narrativo, por isso o cinema surgiu de forma natural”, diz, aos 37 anos, Pedro Neves Marques
Cursou Pintura, na Escola de Belas Artes, em Lisboa. “Fugi dali assim que pude. Não me deu nada em termos de aprendizagem”, diz, explicando que considera a escola conservadora em termos pedagógicos, apesar de ter alguns bons professores (entre os quais destaca Susana Sousa Dias). Contudo, não deixou de dar importância aos colegas, futuros artistas, que lhe deram um sentido de pertença e terá sido por eles que não se mudou para a Escola de Cinema. Também terá sido naquele tempo que fez as primeiras exposições coletivas, onde já mostrava a sua apetência para as letras, expondo “histórias sem princípio nem fim”.
Quando terminou o curso nas Belas Artes, “fugiu” para Berlim e Itália, iniciando um estilo de “artista com a casa às costas”, com múltiplas moradas. Já residia em Berlim quando ganhou o prémio BES Revelação, com uma videoinstalação que expôs em Serralves. E, de seguida, fez a sua primeira exposição individual, na Galeria Pedro Cera, em Lisboa.
Entretanto, ganhou uma bolsa da Gulbenkian e mudou-se para Londres para tirar o mestrado em Artes e Política. Essa bagagem teórica tornou-se essencial para o seu percurso. Aliás, Pedro Neves Marques tem também obra publicada no domínio da teoria e exerceu crítica de artes, de forma mais intensa, quando viveu em Nova Iorque. Um dos seus livros é uma reflexão sobre as questões de género ao longo da história dos androides. Algo semelhante faz, agora, com os vampiros, em Veneza.
IDENTIDADE TRANSATLÂNTICA
Depois de Londres, serviu-se de uma nova bolsa da Gulbenkian e mudou-se para São Paulo, passo determinante no seu percurso: “O Brasil foi muito importante para mim. Deu grande solidez ao meu trabalho, que tem vivido muito de diálogos sobre questões ecológicas, o que é a própria Natureza, além das questões de género, o feminismo, a tecnologia…”Todavia, o seu espírito inquieto não lhe permitiu assentar, definitivamente, arraiais em São Paulo. Pedro Neves Marques mudou-se para Nova Iorque para acompanhar a sua namorada na altura, que para lá ia viver. Foi sem qualquer plano artístico, mas rapidamente se entrosou e começou a frequentar locais importantes no mapa das artes nova-iorquino, e a expor aí. Nos oito anos que passou nos EUA teve exposições em sítios como o e-flux ou o Pérez Art Museum, de Miami. Isto para não falar da vertente internacional que sempre foi crescendo, com exposições em vários países (com destaque para Itália, onde é representado pela galeria Umberto Di Marino).
Dos EUA regressou a Portugal, sobretudo por causa da pandemia. Mas diz que está com vontade de partir outra vez. Sente-se bem no “estilo de vida transatlântico”, como lhe chama, em que de cada sítio para onde vai vê melhor o anterior. Isto faz-se acompanhar de uma postura transdisciplinar. Foi no Brasil que começou a fazer filmes. Ou seja, já há muito que explorava a imagem em movimento nos seus trabalhos artísticos, mas foi ali que começou propriamente a fazer cinema. “O meu trabalho artístico estava a ficar cada vez mais narrativo, por isso o cinema surgiu de forma natural”, justifica.
No total, realizou três curtas-metragens de ficção. A última das quais, Tornar-se um Homem na Idade Média, em comunicação com uma grande exposição que teve na Cordoaria Nacional, ganhou um prestigiado prémio na categoria Ammodo Tiger Shorts do Festival de Roterdão. É uma história transgénica e transgénero, que fala simultaneamente de carne geneticamente processada em laboratório e de gravidez masculina.
Com o seu habitual empreendedorismo, abriu uma produtora de cinema, juntamente com Catarina de Sousa, chamada Foi Bonita a Festa e tem agora o plano de realizar uma longa-metragem.
Da mesma forma, em plena pandemia, resolveu lançar uma editora de poesia, a Pântano, e já publicou três livros, um dos quais da sua própria autoria. Projetos, tem muitos. Vampires in Space, depois de Veneza, chegará à Gulbenkian. Ainda este ano vai dar aulas na Cidade do México e tem uma exposição agendada no Palais de Tokyo, em Paris. Para um futuro próximo, fala em pintar e talvez num regresso a Nova Iorque. Mas, perante todas estas oportunidades, a surpresa poderá vir de outro lado: “O que tenho mais vontade de fazer é retirar-me durante uns tempos para terminar um romance que há muito ando a escrever.” A temática será semelhante: questões de género, ecologia, tecnologia, distopias, eventualmente com vampiros e androides.
O seu percurso foi construído sobretudo lá fora, mas agora Pedro Neves Marques começa a ter reconhecimento em Portugal. Quando lhe perguntamos se sobra algo de portugalidade no meio disto tudo, responde: “Quando mostrei Semente Exterminadora, o meu primeiro filme, no Brasil, alguém me disse: ‘Este é o filme brasileiro mais triste de todos os tempos.’ Apercebi-me, então, de que tenho um sentimento muito português em mim.”