Jorge Gonçalves
Coincidência, efeito borboleta ou ar dos tempos, em 1955 era editado Lolita, de Vladimir Nabokov, Elvis Presley ascendia ao estrelato e Arthur Miller via a sua peça Do Alto da Ponte, inicialmente escrita para um ato, ser representada na Broadway. Modificou-a para dois, após o fracasso da estreia. Do Alto da Ponte conta a história de um estivador de Brooklyn de ascendência italiana, Eddie Carbone, obcecado pela sobrinha de 17 anos, de quem toma conta desde criança, Catherine, e da vinda clandestina de dois parentes da Sicília, Marco e Rodolpho, em busca do sonho americano. Rodolpho quer seguir a carreira de cantor, apaixona-se por Catherine e é correspondido. O narrador é, também, personagem da peça e uma das primeiras coisas que diz é: “Neste bairro, passar por um padre ou um advogado na rua dá azar.” Jorge Silva Melo leva agora ao palco do Teatro São Luiz uma história de miséria e traição, vivida sob a incompatibilidade de duas leis – a da família e a do Estado.
“É poderosa a profundidade com que Arthur Miller desenha as contradições de cada personagem, como nos faz avançar até à delação de Eddie, homem bom e traidor; a dupla personalidade de Rodolpho, adolescente ávido de um mundo – e de uma sexualidade? – novos; a ingenuidade de Marco, aquele que ousa vir à boca de cena e dizer ‘não entendo este país’”, diz Jorge Silva Melo. “Chegamos ao terror e à piedade que os gregos queriam, não pela derrocada dos desejos de um rei ou de um herói, mas através de um pobre estivador sem qualquer heroísmo.”
A questão das migrações e da clandestinidade encontra neste texto mais um grito de denúncia. “Miller reflete sobre as condições de vida destes semicidadãos que são os trabalhadores emigrados, muitos deles clandestinos. Não podem fazer barulho, cantar alto, dar nas vistas; têm de passar despercebidos até conseguirem, talvez um dia, um visto de residência, ou então voltar para a terra”, contextualiza Silva Melo. “E é essa menoridade em que vivem que vem aqui, talvez, explicar a delação de Eddie: como pode cair-se tão baixo? Como pode trair-se a família? A miséria não é só económica: é moral.”
Do Alto da Ponte > São Luiz Teatro Municipal > R. António Maria Cardoso, 38, Lisboa > T. 21 325 7640 > até 27 jan, qua-sáb 21h, dom 17h30 > €12-€15