Faltam 10 minutos para as nove da manhã e o comboio vai partir sem atrasos. No primeiro apeadeiro, um pequeno jardim nos Olivais Sul, entram o maquinista António e a sua filha Flor, de 7 anos, aluna da Escola Básica Sarah Afonso, que fica a dois quilómetros dali. No mesmo compartimento seguem mais duas crianças, de capacete bem apertado, com os seus encarregados de educação por perto.
António Lourenço leva o estandarte, para avisar que se trata de um comboio, sim, mas de bicicletas, grandes e pequenas, que leva pais e filhos até a uma escola primária, quer chova, quer faça sol. Embora pareça redundante, pois qualquer um dá por um grupo de seis a pedalar logo pela manhã numa estrada em que normalmente só passam carros, a sinalização torna-se importante para alertar os mais distraídos e, quem sabe, chamar outros passageiros.

No enorme e verde Vale do Silêncio espera-os mais uma passageira, que embarca sozinha. “Bom dia a todos!”, despede-se o pai, apressado para os seus afazeres. João Bernardino, da Casa da Bicicultura (centro de promoção e educação para a mobilidade em bicicleta), parceira da Câmara neste projeto, ajuda a menina a vencer a subida que agora parece uma montanha intransponível. Quando todos ultrapassam este único obstáculo até chegarem à escola, espera-se na terceira paragem por mais quatro mini tripulantes. O comboio tem agora todas as carruagens cheias e já só para ao portão principal, na Rua Almada Negreiros, para que as crianças se despeçam dos pais e estacionem as suas bicicletas na estrutura instalada recentemente para que não haja problemas de roubos. A viagem demorou cerca de 25 minutos, em ritmo brando, como manda a prudência, sem que o comboio descarrilasse uma única vez.
Com os filhos bem entregues nas aulas, os pais podem passar para o café que fica nas traseiras do mercado, a dois passos, ou pedaladas, da escola. O núcleo duro, que levou isto para a frente, conhece-se bem e é composto por Filipa Costa, Luís Valente e Carla Figueiredo. Mas o maquinista, como já se disse, é António Lourenço. Foi ele quem pediu licença a Teresa Ribeiro, a diretora, para avançarem, insistiu para se instalar o bicicletário e mandou um email à Câmara Municipal de Lisboa a pôr o dedo no ar: “Também queremos fazer parte!”

A ideia surgiu quando perceberam que a escola do Parque das Nações já organizava os miúdos neste sentido e também foram aprender com a do Restelo, que estava um passo à frente. Mas só depois de terem formação com os monitores da Casa da Bicicultura é que puderam avançar sem depender totalmente do departamento de mobilidade da Câmara – para se obter o título de maquinista, exige-se responsabilidade, pontualidade e compromisso. A seguir receberam um colete refletor e ficaram então aptos a coordenar o caminho para a escola – aconselha-se que haja um maquinista principal e outros auxiliares, um adulto por cada quatro crianças (neste caso até costumam ser mais). E se oficialmente este comboio só parte às quintas-feiras, na prática a maioria dos pais que o integra leva os filhos diariamente de bicicleta.
Sempre de olho no Whatsapp
No entanto, Miguel Cambão, da divisão de estudos e planeamento da mobilidade, nunca desliga. No seu telemóvel tem ativos todos os grupos de Whatsapp que dinamizam comboios na cidade, desde o início do ano letivo 2020-2021. E a esta hora da manhã estão sempre bem animados, com partilhas de localização em tempo real e informações para os todos os membros. “Esperávamos desenvolver este projeto em cinco escolas com cinco linhas, mas neste momento já estamos em 9 estabelecimentos com 18 linhas a funcionar”, contabiliza, visivelmente satisfeito com o sucesso do programa, que ultrapassou largamente as expectativas camarárias.
“Quando se apanham pais ativistas como estes, o processo é muito rápido e a autonomização também”, acrescenta. Realmente, desde o dia em que tomaram a iniciativa até à viagem inaugural passou-se apenas um mês. Normalmente tudo começa com a inscrição dos passageiros na área da escola que consta do site da Câmara. Sempre que se junta um grupo de quatro ou cinco interessados, traça-se o melhor e mais rápido percurso, tendo em conta as moradas das crianças inscritas. Quando já são muitas, e para não estender demasiado a rota, desdobram a viagem. Na Escola Filipa de Lencastre, por exemplo, já existem simultaneamente cinco linhas para lá chegar.
Os efeitos positivos do comboio de bicicletas ultrapassam o facto de os carros dos pais destes meninos ficarem estacionados à porta de casa. Com a iniciativa, há cada vez mais pessoas a tornar este meio de transporte preferencial e a ideia é capacitar estas crianças para a circulação em duas rodas na cidade, de uma forma autónoma. E pôr toda a gente a pensar no espaço público e na forma como ele foi estruturado para o automóvel. Quem sabe se, com a ajuda de todos, isso possa vir a mudar? Nesta escola, em que apenas 40% dos alunos não chegam de carro, o mesmo grupo de pais que dinamiza o comboio pediu a quem de direito entradas mais seguras para as crianças, em que se dá mais espaço aos peões.

No final do dia de hoje, quando acabar as aulas, Flor há de regressar a casa a pedalar. Já nem concebe estas deslocações de outra forma. A alegria dela em andar de bicicleta é o motor que faz com que o pai seja um orgulhoso maquinista – isso sente-se ainda mais de cada vez que aperta a buzina de borracha, à antiga, que prendeu no guiador da sua locomotiva, para avisar que o comboio vai em andamento.
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