Às nove da manhã, há quem entre no Época para tomar o pequeno-almoço – pão de fermentação natural, acabado de sair do forno, com manteiga de amendoim, papas de aveia ou uns ovos mexidos com cebolinho e queijo curado. Mas o mais recente café saudável da Rua do Rosário, aberto há menos de um ano por Liliana Alves e por Tiago Teixeira, é também um ponto de encontro nesta zona do Porto, conhecida como o Bairro das Artes. Enquanto se toma um café de filtro, antecipa-se o dia entre conversas ao balcão, junto à janela ou na mesa comunitária, que guarda livros de cozinha. Quase todos se conhecem.
O casal encontrou este sítio “por acaso”, depois de ter trabalhado em Copenhaga e em Estocolmo, e não esperava vir a ter este ambiente. “Tornámo-nos um café de bairro por termos ficado nesta zona. Em nenhuma outra teria sido possível”, afirma Liliana. Uns meses depois de abrirem o Época, acabaram por ir viver para a Rua Miguel Bombarda, ali a dois passos. “Andamos sempre a pé e fazemos a nossa vida neste quarteirão. Só pegamos no carro uma vez por semana, quando vamos à quinta BioAgro, em Vila Nova de Gaia, colher couve-toscana, beterrabas, funcho de bolbo…” São produtos da estação, biológicos e locais, os que entram nas receitas preparadas na cozinha, à vista de todos.
É entre conversas à mesa que encontramos Hugo Dunkel, mentor da Local – uma associação sem fins lucrativos que se dedica a promover uma cultura alimentar local, saudável e sustentável. Vive aqui perto, na Rua Diogo Brandão, e, se neste dia não veio de bicicleta (chove a cântaros), é sempre em duas rodas que se movimenta entre a Cedofeita e a Boavista. “Apesar de ser fria a nível arquitetónico, esta zona tem do ponto de vista social e cultural uma grande diversidade e uma consciência ambiental e ecológica de que gosto”, assume.
Disso mesmo tem dado conta Leonor Moreira que com a irmã, Paula, toma conta da cafetaria do Quintal Bioshop, aberto vai para 12 anos, no cruzamento da Rua do Rosário com a Miguel Bombarda. Naquela que é uma das primeiras mercearias biológicas da cidade com preocupações de consumo sustentável, tanto entram famílias com filhos pequenos como estrangeiros que vêm, de propósito, da Baixa, à procura de produtos biológicos e vegan. “O que tem hoje?”, é a pergunta que mais se escuta à hora do almoço. A ementa é feita com os ingredientes do dia, e o que a terra dá hoje pode não dar amanhã. Leonor Moreira só lamenta a “falta de identidade urbanística” do Quarteirão das Artes – que, além da Rua do Rosário, compreende as ruas Miguel Bombarda, do Breiner e por Adolfo Casais Monteiro –, cuja génese nasceu há 26 anos quando o galerista Fernando Santos aqui chegou por uma “simples coincidência”.
Os pioneiros de Bombarda
Em 1992, um armazém vazio no número 526 na Miguel Bombarda oferecia as condições que Fernando Santos procurava para abrir uma galeria. E como a rua tinha tantos espaços disponíveis, outros seguiram-no, chegando atualmente às quase duas dezenas de galerias que, desde 2007, se juntam para inaugurarem, em simultâneo, novas exposições (o que volta a acontecer já neste sábado, 10). “Hoje temos de ter capacidade para surpreender”, diz o galerista que gostaria de organizar “uma feira de arte” ou “um festival que envolvesse arquitetura, design, música e teatro”.
E ele, que vive no bairro, não é homem de cruzar os braços. Assim, há um ano e meio, abriu o Oficina com o chefe de cozinha Marco Gomes, num lugar onde antes se restauravam carros. E é fácil encontrar o restaurante. Basta seguir a luz da instalação de Pedro Cabrita Reis e sentar- -se à mesa para experimentar o lombinho de porco bísaro, castanhas, cogumelos, chalotas e ervas do campo, ou o cordeiro de leite com arroz de carqueja e couve ao vapor. Fernando Santos só reclama a necessidade de “alargar passeios e proibir o estacionamento”.
A mesma opinião tem Marina Costa que, há 20 anos, escolheu a Miguel Bombarda para abrir o edifício Artes em Partes. “É preciso iluminar, tornar mais airoso o percurso”, sugere. Nesse edifício, com quatro pisos de comércio alternativo, onde cada divisão funcionava como uma loja – ainda lá está a Rota do Chá –, cruzavam-se estilos alternativos e urbanos.
Algumas lojas acabaram por abrir espaços próprios no bairro, com montra para a rua, como é o caso da Cocktail Molotof, Matéria Prima ou a Freaks Hair Designer. Já a Muzak e a Artes em Partes estão agora instaladas no Centro Comercial de Bombarda (CCB), que Marina Costa gere desde 2007, um local cool, a cruzar o contemporâneo com apontamentos retro, sem perder a elegância e um certo ar boémio. No último ano, abriram por lá cinco projetos de autor, no feminino e com vertente de oficina. A artéria das galerias tornou-se “uma rua de artistas”, nota Marina. Isso também observa José Carlos Soares que, há dois anos, logo depois de ter vindo viver para o bairro, abriu a galeria Cruzes Canhoto – de arte bruta, primitiva e popular. “Há outra filosofia de vida, alternativa, verde, gay-friendly e culta”, diz.
Entre decoração, joalharia e ‘‘guesthouses’’
A designer de joias Liliana Guerreiro, até ter parado em frente ao prédio António Enes Baganha, do arquiteto Marques da Silva, na Rua do Rosário, andou anos à procura de um lugar onde abrir uma loja. “Não é um local onde passem pessoas a toda a hora”, admite, mas quem entra na sua loja, aberta em outubro passado, vem à procura de “galerias de arte, espaços alternativos e objetos de autor”. E quem passa, cumprimenta a joalheira e espreita a montra onde estão os anéis e colares da Colors, a sua primeira coleção lançada há 15 anos (e a mais vendida), e a filigrana aplicada em joias contemporâneas, premiada em feiras internacionais. “Há uma relação de boa vizinhança”, diz a designer que, há quatro anos, vive perto daqui e deixou “de andar de um lado para o outro”.
Foi por acreditar ter “chegado a bom porto” que Philip-Didier Fouligny abriu, em dezembro, uma loja de decoração que espelha as múltiplas vivências pelo mundo deste francês que trocou a Nova Caledónia pelo Porto, onde já vinha muitas vezes. Philip mora próximo da Bom Porto – a loja só podia ter esse nome. “Sou feliz. Ando sempre a pé, adoro as pessoas.” As peças vão ao encontro dos seus gostos pessoais e estéticos: as mesas e bancos de João Bruno Videira, as cadeiras e o candeeiro de Baltasar Portillo, a cerâmica de Kristina Mar ou as fotografias de Jean-Michel Tardy, que andou anos a fotografar o interior de edifícios antigos do Porto, antes de estes terem sido restaurados.
A par de lojas de decoração contemporânea ou vintage, novos alojamentos têm aberto nos últimos anos. Como o Rosa et Al Townhouse, por várias vezes referido em publicações internacionais como a Monocle ou o The New York Times, que Patrícia de Sousa e o irmão, Emanuel, abriram em 2012. Nessa altura, recordam, encontraram uma zona com poucos negócios que foi sendo, aos poucos, conquistada por artistas. “Oitenta por cento dos nossos clientes vêm pela casa, mas identificam-se com esta zona porque são pessoas preocupadas com a alimentação e a sustentabilidade”, conta Patrícia. Aos seis quartos deste edifício do século XIX juntaram recentemente o Garden Pavillon, um quarto situado no jardim traseiro da casa, com lareira, spa e terraço, entre outras comodidades exclusivas. Envolvidos pelo espírito do bairro, os dois irmãos ainda abriram a Early Made, uma loja de moda com marcas nórdicas feitas em Portugal.
Os novos moradores
É por gostar tanto deste quarteirão que Emanuel de Sousa, arquiteto, está a recuperar uma casa na Rua do Breiner para onde irá viver. “Foi uma escolha óbvia. É uma zona onde se sente o bairro, há uma noção de comunidade ativa que trabalha, tem os seus empregos e o seu modo de vida na mesma zona”, conta. Trabalhar e viver no mesmo sítio foi também a intenção do brasileiro Pedro Pezinho quando deixou, há sete meses, o Rio de Janeiro, com a mulher e o filho de dois anos. “Passei dez dias em Lisboa e dez dias no Porto para decidir onde ia ficar. Não tive dúvidas em escolher o Porto pelo clima e pelas pessoas. Tem o tamanho certo”, conta o designer e ilustrador que trocou um emprego na produtora brasileira Globo por “melhor qualidade de vida”. A partir das mesas do cowork Circus Network trabalha para o Brasil e Canadá, e ainda lhe sobra tempo para ir buscar o filho ao infantário que fica no outro lado da rua.
Quando o ilustrador Luís Mendonça (Gémeo Luís) se mudou para a Rua do Rosário, há 17 anos, depois de ter vivido em Macau, vinha à procura de “um sítio calmo e de uma casa/atelier”. À exceção das aulas que dá na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, é aqui que divide os seus dias, entre o atelier – onde produz todas as peças, algumas para a Galeria da Biodiversidade – e a vida familiar. “Compro aqui tudo: fruta, legumes, carne e peixe.” À época, encantado com a zona, desafiou dois dos seus irmãos e alguns amigos a mudarem-se também. E assim fez o italiano Álvaro Negrello – maquetista de arquitetura de Álvaro Siza Vieira, Eduardo Souto de Moura e Frank Gehry, entre outros – que vive, há 15 anos, na Rua do Breiner. “Quando vim para cá e ia à varanda das traseiras, havia escuridão. Agora há vida”, diz o maquetista, apontado hoje em dia como o anfitrião do bairro. Álvaro e Luís, contam, entre risos, terem por hábito deixar a luz acesa do rés do chão “para iluminar quem passa na rua”.
Uma comunidade artística
Depois de lanchar no café Célia – que, com 50 anos, continua a ser um ponto de encontro do bairro –, Catarina Azevedo volta para o seu atelier, aberto há três anos, na Rua do Breiner. Basta bater à porta para entrar no Alfaiate do Livro, onde a designer gráfica se dedica à encadernação. Cartolinas de cor, papel impresso, papéis japoneses ou padronizados são alguns dos materiais que utiliza (as peles e sedas ficam de fora) para dar vida a um livro de autor, um álbum de fotografias ou uma compilação de poemas. O sítio surgiu ao acaso, mas Catarina e o namorado, Pedro, com quem partilha o espaço, não se arrependeram. “Pensávamos que o turismo poderia tornar a zona impessoal mas, pelo contrário, vemos as mesmas caras todos os dias e dá para cumprimentar as pessoas”, contam.
No Bairro das Artes tem crescido o espírito comunitário (e ainda bem). Ali perto, o cowork da Cru, dirigido às indústrias criativas, junta cerca de 40 profissionais de diferentes áreas: designers de moda, programadores, especialistas em vídeo ou fotografia, que alugam uma mesa de trabalho. O mais importante é o espírito de entreajuda. “Olho para a comunidade como um todo. Há um cuidado na seleção das pessoas e nas atividades que desenvolvem para que seja um sistema produtivo”, esclarece Tânia Santos, a fundadora deste cowork, nascido há seis anos e que reúne portugueses e estrangeiros. É o caso do galego Breogan Xuncal, designer gráfico, que se apaixonou de tal forma pela cidade e pelo espírito de comunidade que confessa: “Dói-me deixar o bairro quando tenho de viajar para fora.” “Neste quarteirão não há entretenimento, o que interessa é o contemporâneo, o criativo, a procura de negócios disruptivos”, acrescenta Tânia. Muita da criatividade da Cru – roupa, ilustrações, cadernos, cerâmica – está à venda na loja da entrada, que serve de montra à produção sustentável.
Por estes dias, já não deverá encontrar a designer gráfica Ana Martins (Aheneah) a pintar ao vivo os cães de loiça na Circus Network, na Rua do Rosário. A única galeria de arte urbana e ilustração da cidade, inaugurada há três anos por Ana Muska e André Carvalho, é uma porta aberta a artistas e a quem queira ver ilustração e graffiti em diferentes suportes. E a Circus, que representa artistas como Draw, Fedor, Wasted Rita, Mesk ou Lara Luís, entre outros, vai coeditar o primeiro disco do rapper Minus & Mr. Dolly (Hugo Oliveira) que é rececionista no Gallery Hostel, na Rua Miguel Bombarda. É esta espécie de viveiro artístico e espírito de comunidade que se vive nesta zona do Porto onde, nos próximos meses, abrirão outros alojamentos, restaurantes, uma nova galeria e uma padaria artesanal. E isto sem – esperamos – perder o espírito de bairro.
DORMIR
Gallery Hostel
Aberto em 2011, neste hostel 95% dos hóspedes são estrangeiros. Dos mesmos proprietários é a Gallery Home, a guesthouse situada quase em frente, com cinco suítes (três delas deluxe). R. Miguel Bombarda, 222 > T. 22 496 4313 > Gallery Hostel: a partir €20; Gallery Home: a partir €90
Mercador
Com uma abordagem original às artes decorativas tradicionais, ocupa um edifício do século XIX, com sete quartos e um simpático jardim. R. Miguel Bombarda, 382 > T. 22 408 1545 > A partir €78
Rosa et al Townhouse
R. do Rosário, 233, Porto > T. 22 340 0730 > A partir €128
COMER
Casa Diogo
Os biscoitos de Valongo da Casa Diogo deram o nome à mercearia e petiscaria, onde se vendem (e servem) produtos de Trás-os-Montes. R. Miguel Bombarda, 416 > T. 91 740 8984 > seg-qui 11h-19h30, sex-sáb 11h-22h
Breyner 85
O bar organiza atividades culturais como quiz, aulas de dança, stand-up comedy ou jam sessions. R. do Breiner, 85 > T. 93 644 0865 > qua 19h-02h, qui, sex 19h-06h, sáb 12h-16h, 19h-06h, dom 12h-16h, 23h-06h
Copo d’Uva
A mercearia e garrafeira abriu, no final do ano passado, com produtos nacionais e do mundo: chocolates, conservas, chás, massas italianas, entre outros. R. Adolfo Casais Monteiro, 101 > T. 22 600 0753 > seg-sáb 10h-20h
Época Porto
R. do Rosário, 22 > ter- dom 9h-17h
Frida – Cocina.Mestiza
Chefiado por Soledad Calvillo, é o único restaurante de cozinha mexicana do Porto. Na ementa há tacos picantes, chiles, guacamole e margaritas. R. Adolfo Casais Monteiro, 135 > T. 22 606 2286 > seg-dom 20h-24h
Mercearia Pomar Castro
A mercearia mais antiga da zona, aberta há 50 anos por Leonor Castro, tem uma diversidade de fruta, legumes e flores. R. Miguel Bombarda, 160 > T. 22 202 6890 > seg-sáb 8h-20h30
Oficina
R. Miguel Bombarda, 273-282 > T. 93 671 2384 > ter-sáb 12h30-15h seg-qui 19h30-23h, sex-sáb 19h30-24h
Quintal Bioshop
R. do Rosário, 177 > T. 22 201 0008 > seg-sáb 10h30-20h
Rota do Chá
Tem uma carta com 300 chás diferentes, grande parte misturas exclusivas, para acompanhar scones, torradas, bolos e sanduíches. R. Miguel Bombarda, 457 > T. 22 013 6726 > seg-dom 11h-21h
COMPRAR
Alfaiate do Livro
R. do Breiner, 343 > T. 22 329 0465
Banema
Onde funcionou a antiga Padaria Independente, nasceu uma loja de objetos e materiais de design. R. Adolfo Casais Monteiro, 123 > 22 766 1910 > seg-sex 9h30-13h, 14h30-19h
Bom Porto
R. do Rosário, 115 > T. 91 332 7304 > ter-sex 12h30-19h, sáb 11h-20h
Circus Network
R. do Rosário, 54 > T. 22 201 1998 > seg-sáb 10h-20h
CRU Loja
R. do Rosário, 211> T. 91 289 6618 > seg-sáb 10h-20h
CCBombarda
R. Miguel Bombarda, 285 > T. 93 433 7703 > seg-sáb 12h-20h
Early Made
R. do Rosário, 235 > qua-sáb 12h-20h
Liliana Guerreiro
R. do Rosário, 129 > T. 96 499 4370 > seg-sáb 11h-19h
Livraria Papa-Livros
R. Miguel Bombarda, 523 > T. 22 093 1549 > seg 14h30-19h30, ter-sáb 10h30-12h30, 14h30-19h30
Patch – Lifestyle Concept Store
A loja de decoração e moda vintage de Artur Mendanha é uma das mais antigas. R. do Rosário, 193 > T. 22 094 6101 > seg-sáb 11h-20h
Pedro Guimarães
R. do Breiner, 459 > T. 22 609 6069 > seg 14h30-19h30, ter-sáb 10h30-12h30, 14h30-19h30
Scar-ID Store
Dedicada a marcas de designers portugueses emergentes nas áreas da moda, acessórios e mobiliário. R. do Rosário, 253 > T. 22 203 3087 > seg-sáb 10h-20h