É com os pregões da florista Odete Vieira, 77 anos, que chegamos, num dia de sol de inverno, ao renovado Largo da Graça. No lugar onde antes havia carros estacionados, há agora um coreto e bancos de jardim. “É bonito, mas não tem grande serventia”, atira Maria do Carmo Gonçalves, 59 anos, responsável pelo quiosque de revistas e jornais. Antes de espreitarmos a estrutura feita em ferro e em mármore, instalada por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa (CML), em parceria com a Junta de Freguesia de São Vicente, voltamos à florista de voz altiva e estatura pequena, que, além do mais, é boa conversadora. E, entre críticas e histórias de antigamente, ouvimos que leva quase cinco décadas de venda de flores pelas ruas do bairro. “Andei 23 anos clandestina, a fugir da polícia, mas nos restantes já estava legalizada”, explica.
Depois de tanto tempo sem poiso coberto, a CML cedeu- -lhe, há dois anos, uma pequena casa de madeira para vender as rosas e as orquídeas. Para a florista Odete, os bancos de jardim podem não ter grande utilidade, mas a verdade é que já há, por lá, muitos moradores que fazem deles um ponto de encontro. Ali partilham assento com turistas a descansar, depois da subida colina acima. Após as obras (que se estenderam por um ano e que resultam do programa Uma Praça em Cada Bairro, promovido pela CML, em colaboração com as 24 juntas de freguesia da cidade), há, porém, ainda mais diferenças que saltam à vista neste largo – alargaram-se os passeios, pôs-se mais iluminação, renovou-se o piso para os peões circularem. Para os condutores, fica o aviso: a partir de fevereiro entram em funcionamento os parquímetros e os parques geridos pela Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL), entretanto instalados em diversas ruas da Graça.
A passagem do célebre elétrico 28, sempre cheio de turistas (e de carteiristas também, acrescente-se), faz-nos prosseguir caminho para conhecer as novidades e (re),visitar os clássicos do bairro. Não sem antes subirmos as escadas do coreto para ver as vistas e as fachadas revestidas a azulejo. Ali bem perto, fica o Pitéu da Graça, que em 2015 teve direito a destaque no New York Times. “Ainda hoje vêm cá clientes por causa dessa reportagem”, lembra Luís Vieira, um dos proprietários desse restaurante de comida portuguesa. As pataniscas (€9,90), a feijoada à transmontana (ao sábado, €9,90) e o cozido à portuguesa (à quinta-feira, €14,50) são os pratos mais apetecidos. E também há uma grande aposta no pescado: “Vou todos os dias aos mercados de Alvalade e da Ribeira escolher os chocos, as douradas e os polvos. Gosto de ver o peixe com os meus olhos”, diz Luís, que quer manter a qualidade do negócio iniciado nos anos 40 pelos seus tios Júlia e António.
Continuando pelo largo que se estende, a um curto passeio a pé, até ao Miradouro da Graça, há mais uma morada gastronómica a ter em conta. No piso térreo do prédio azul da Vila Sousa e mesmo ao lado do lendário Botequim, fica o restaurante Graça 77, ali a funcionar há um ano. Antes de se espreitar a ementa, especializada em cozinha vegetariana, é a decoração que chama à atenção. Destacam-se as paredes em pedra, que se misturam com os tampos das mesas reaproveitadas pelo novo inquilino. “Brinquei com o mobiliário que encontrei na altura das obras. Gosto de criar peças novas”, diz António Borges, vegetariano há mais de 30 anos, com uma veia para as artes e a alma de viajante que já o levou a visitar 50 países, de quatro continentes. Sentados à mesa, experimente-se a sopa de abóbora e cenoura (€2,50) e o arroz frito com vegetais e ovo (€9,50).
Chegados ao Miradouro da Graça – e antes de nos sentarmos na esplanada agora recuada uns metros por causa das obras do funicular que, no futuro, ligará a Mouraria a este lugar –, faça-se a fotografia da praxe a partir desta “varanda” da cidade: o Tejo, o Castelo de São Jorge, o casario, estão todos ali, a cada pestanejar. “Somos dos primeiros quiosques que resistiram e com algum êxito. Temos a vantagem de ter esta vista magnífica, mas também devemos ter algum mérito”, afirma João Garção, proprietário da Esplanada Igreja da Graça, que em setembro passado celebrou 25 anos. Se nos primeiros tempos só aparecia um turista de vez em quando – “nessa altura poucos subiam até ao miradouro, ficavam-se pela Sé de Lisboa”, conta João –, agora são eles que enchem a maioria das 40 mesas disponíveis. No inverno, é mais fácil arranjar lugar para saborear uma sanduíche de salmão (€6) ou beber um chocolate quente (€2,60). Tudo isto embalado pela música tocada ao vivo por artistas de rua.
Do Convento reabilitado ao Jardim da Cerca
Aproveite-se esta esplanada, que convida ao namoro ou às longas conversas entre amigos, para descansar. A dois passos, junto à igreja, fica o Convento da Graça, aberto ao público há um ano, após profundos trabalhos de reabilitação, resultado de um protocolo entre a Fábrica Paroquial da Freguesia de Santo André-Graça, Real Irmandade de Santa Cruz e Passos da Graça e a CML. Tem entrada gratuita e pode visitar-se a portaria, o claustro e a Sala do Capítulo, onde está Corpus Christi – A Procissão do Corpo de Deus. A exposição, composta por mais de 1500 figuras de barro feitas pelo escultor Vasco Pereira e pintadas por António Soares, entre 1944 e 1948, retrata como seria a procissão do Corpo de Deus no século XVIII.
Deixemos o miradouro e desçamos pela Calçada do Monte até à entrada do Jardim da Cerca da Graça. Trata-se, oficialmente, do “maior espaço verde de acesso público da zona histórica da cidade”. E, se a Graça merecia há muito um jardim, a abertura, em junho de 2015, veio permitir também a sua ligação ao bairro da Mouraria. Durante a semana, há paz suficiente para ler um livro, por exemplo, na esplanada da Cozinha Popular da Mouraria, projeto social de Adriana Freire, que serve petiscos do mundo. A eslovena Mateja, 32 anos, prefere vir trabalhar para este jardim. Apesar de viver bem perto, é aqui que se senta a preparar as aulas de jazz que leciona e a estudar para o mestrado em música. Um passeio pelo jardim, 1,7 hectares em socalcos, leva-nos a um pomar, com muitas laranjeiras, e a um parque infantil, com escorregas e baloiços. O parque de merendas condiz com piqueniques, e, nos três miradouros, perdemo-nos com a paisagem. Pena é que alguns frequentadores não obedeçam às regras que proíbem que os cães andem sem trela e que obrigam os donos à recolha de dejetos. Fica, por isso, um aviso ao leitor: evite sentar-se no relvado.
Focaccias e feijoada à terceirense
Descendo a Rua Voz do Operário, viremos à esquerda junto à Igreja de São Vicente de Fora, em direção ao Campo de Santa Clara. Não tem que enganar, basta perguntar onde se faz a afamada e concorrida Feira da Ladra. É nesta zona que, todas as terças e sábados, se concentram vendedores, curiosos e turistas. Mas também é aqui que, em frente ao Mercado de Santa Clara, se encontram novos negócios como o restaurante Açores na Feira. À porta, quem recebe é o proprietário Bruno Silveira, 30 anos, nascido na ilha Terceira, que, após uma passagem pela televisão (participou na série Morangos com Açúcar e na telenovela Flor do Mar), se dedica há três meses a receber (e a entreter) quem vem deliciar-se com a gastronomia açoriana. E, só de espreitar e cheirar a travessa de feijoada à terceirense, feita pela mãe Noémia, fica-se com água na boca. “É uma comida que leva muito tempo a preparar, tem muitos temperos para ficar apuradinha”, explica a cozinheira de sorriso fácil, aguçando-nos a curiosidade. Na ementa, há ainda telha de lulas (€18,50) e bife frito regional, com malagueta e alho, que acompanha com ovo e batata frita (€21). “Trazemos muitos produtos dos Açores, como o atum ou a carne, mas também os licores e os gins”, revela Bruno.
Ao lado, com esplanada onde apetece ficar a apanhar sol, está o Copenhagen Coffee Lab. Ali, os cafés têm os nomes das máquinas onde são preparados: pede-se um V60, um Aeropress ou um French Press. Esta “nova” forma de beber café foi trazida pelas irmãs dinamarquesas Susan e Hellen Jacobsen, que começaram com uma carrinha de rua e encontraram, há cerca de três anos, morada fixa junto à Praça das Flores, no Príncipe Real. Para quem aprecia um café de balão, mais texturado e encorpado, aconselham um French Press (€4 ou €3, consoante o número de chávenas). Aberto também recentemente, o restaurante Tazza in Giro está decorado com peças compradas a feirantes, que estão a dois passos. “Tentamos fazer comida saudável sem grandes complicações”, diz o italiano Enrico Postiglioni. Há pratos na lista já definidos, mas a ideia é que o cliente componha a sua própria refeição, fazendo três opções. Primeiro, escolhe a base, que pode ser, por exemplo, quinoa, arroz integral e grão (€3). Depois, o recheio, camarão com tomate (€4) ou curgete, alho, vinagre e hortelã (€3). Por fim, o molho: limão, soja e verduras ou picante. “No fundo, fazemos comida que todos devíamos comer em casa”, resume o também proprietário da Focaccia in Giro, duas portas ao lado. Ali não há dúvidas: servem-se 12 variedades de focaccias caseiras. “São estaladiças por fora e macias por dentro, como gosto de as comer”, descreve Enrico. Da mais simples, com mortadella di Bologna (€3,50), à mais elaborada, com salmão, cebola caramelizada, curgete e laranja (€6), quem manda é o gosto de quem ali se senta. Antes de deixar o Campo de Santa Clara, não esqueçamos o renovado Jardim de Botto Machado, o quiosque-esplanada Clara Clara e a vista privilegiada sobre o Tejo.
“Somos todos mestiços”
O passeio segue para a distante Calçada dos Barbadinhos. Não é fácil de encontrar mas, com as indicações dos moradores, chega-se à Aldeia–Crescer em Família, um projeto pensado para famílias. Inspirada pelo provérbio africano que acredita que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, Sónia Aranguiz, 37 anos, nascida no Chile, abriu este sítio há cerca de um ano. Junta uma pequena loja onde se vendem roupas e brinquedos, e uma cafetaria, com sugestões saudáveis, feitas com produtos biológicos e orgânicos. É o caso do pão de legumes (€1,80), do salame vegan (€1,80) e dos biscoitos com pouco açúcar (€0,80). A ideia é que, enquanto os pais relaxam, os filhos brinquem nesta grande sala, leiam um livro, façam desenhos. Já ao lado, decorrem os workshops de pintura, as aulas de dança e os concertos de música para bebés. Para os adultos, há, por exemplo, dança do ventre e ioga.
Antes do dia terminar, e de se deixar o bairro da Graça, guarde-se fôlego (e apetite) para jantar na Casa Mocambo. Com alguns bancos forrados com tecidos trazidos de África, as paredes estão decoradas com as pinturas de Ana Natureza e Maio Coopé, entre outros artistas que ali expõem (e vendem) as suas obras. “É uma casa que quer provar que somos todos mestiços, e que pretende celebrar a lusofonia ao ligar a gastronomia com a arte”, diz Mafalda Nunes, 42 anos, responsável por este restaurante, galeria de arte e sala de espetáculos. “Pego em receitas de pratos portugueses e uso produtos africanos, como a mandioca, os quiabos e a batata-doce”, explica. Há também moamba (€8,50) e, até ao final deste mês de janeiro, às sextas e sábados, pratos brasileiros, como o pernil assado com feijão tropeiro. Na sala da cave, preparada para receber jantares de grupo, já aconteceram concertos, lançamentos de livro e momentos de poesia.
E se o passeio já vai longo, este dia-roteiro não ficaria completo sem uma visita ao Damas, aberto desde o dia 25 de abril de 2015. Funciona como bar, com mesas à porta, onde sabe bem beber uma imperial, e onde são servidos jantares (almoços só em dia de Feira da Ladra, à terça e ao sábado) com sabores que viajam por Portugal, Ásia, África e Brasil. Todas as quintas, sextas e sábados, há música ao vivo e djs para ficar a dançar até às 4 da madrugada. Esta sexta, 26, a partir das 23 e 30, sobe ao palco o artista residente Mundo Quesadilla. A sua música é bastante eclética, do rock independente aos ritmos pop, africanos e brasileiros. E é isto – a Graça é um mundo. Vamos até lá?
O que ver
Convento da Graça
Miradouro da Graça > ter-sáb 10h-17h30, dom 10h-18h > grátis
Jardim da Cerca da Graça
O jardim possui três entradas: uma junto ao Convento da Graça, outra na Calçada do Monte, a meio da encosta, e na Mouraria, na zona das Olarias, junto ao Centro de Inovação da Mouraria
/Quarteirão dos Lagares > grátis
Primeiros Sintomas
Após sete anos no Espaço Ribeira, no Cais do Sodré, a companhia de teatro Primeiros Sintomas mudou-se para o Centro de Artes de Lisboa, na Graça. Ali têm mais espaço para criar espetáculos, desenvolver cursos, oficinas de teatro e acolher peças de outras companhias. A partir de 3 de fevereiro, realizar-se-á a oficina Bicho do Teatro, para crianças dos 6 aos 11 anos. Centro de Artes de Lisboa > R. de Santa Engrácia, 12 > T. 91 507 8572
Onde comer
Açores
na Feira
Campo de Santa
Clara, 140 A-B
> T. 96 469 2688
> seg-dom 8h30-24h
A Janela
Agora, para se almoçar
n’A Janela, já não é preciso entrar pela associação e escola Voz do Operário.
A cafetaria ganhou também uma nova entrada lateral, com esplanada, e acesso direto ao interior. A ementa inclui massada de robalo, beringela recheada com migas de enchidos e bacalhau com ovo a baixa temperatura (€6,50 a €7), entre outras sugestões que mudam diariamente. Há ainda dois brunches, servidos, aos sábados e domingos, entre as 11 e as 17 horas.
Voz do Operário
> R. da Voz do Operário, 3
> T. 21 886 2155 > seg-sex 8h30-21h, sáb-dom 10h-19h
Aldeia
— Crescer em Família
Cç. dos Barbadinhos, 136, Lj. E >
T. 93 560 4001 > seg-sáb 9h-13h, 15h-19h
Botequim
No tempo em que era gerido por Natália Correia, transformou-se num lugar de tertúlias, frequentado por nomes ligados às artes e à literatura. Atrás do balcão, ainda é possível ver a fotografia da escritora e, nas prateleiras, alguns dos seus livros. Mas, neste café, há agora uma nova clientela e uma ementa variada (aconselham-se os folhados de vegetais assados e mozzarella e o de bacalhau com batata-doce e espinafres). Lg. da Graça, 79-80
> T. 21 888 8511
> seg-dom 9h30-1h
Casa
Mocambo
R. do Vale de Santo António, 122A
> T. 91 250 9906
> ter-sex 11h-15h, 18h-24h, sáb 11h-15h, 18h-2h, dom
18h-24h (almoço
com reserva)
Clara
Clara
Jardim Botto Machado > Campo de Santa Clara > T. 21 885 0172 > seg-dom 10h-19h
Copenhagen Coffee Lab
Campo de Santa Clara, 136 > seg-sex 8h-18h, sáb-dom 9h30-18h
Esplanada Igreja da Graça
Miradouro da Graça > seg-dom 10h30-
-24h (inverno), 10h-1h (verão)
Giro – Comida do Mundo
Abriu, um dia antes da Consoada, como “prenda antecipada” aos clientes apreciadores de comida japonesa. Sushi, sashimi, temakis, nigiris e salada japonesa são alguns dos pratos servidos. Cç. do Monte, 96-100
> T. 21 887 3209 > seg-dom 8h30-23h
Graça 77
Lg. da Graça, 77 >
T. 21 134 8839 > ter-
-dom 10h-23h30
Maria Limão
R. da Verónica, 122
> T. 91 349 2228
> seg-dom 9h-19h
Pitéu da Graça
Lg. da Graça, 95-96 > T. 21 887 1067 > seg-sex 12h-15h, 19h-22h30, sáb 12h-15h
Tasca do Jaime
Mesmo em frente ao antigo Royal Cine, a Tasca do Jaime conta já com 28 anos de vida. Ali, nas tardes de sábados, domingos e feriados, ouve-se fado vadio à desgarrada, entre as 16 e as 18 horas. São conhecidas as filas de moradores e turistas, que vão espreitar e juntar-se a esta festa animada. R. da Graça, 91
> T. 21 888 1560
> ter-dom 9h-24h
Tazza in Giro
Campo de Santa
Clara, 139 > T. 91 623 5667 > ter-sáb 9h-16h
Sair à noite
Damas
R. da Voz do Operário, 60 > T. 96 496 4416 > ter 12h-2h, qua-qui 18h-2h, sex 18h-4h, sáb 12h-4h, dom 17h-24h
Comprar
Feira da Ladra
Antigo mercado franco de Lisboa, com raízes que remontam ao século XIII, a Feira da Ladra é o maior mercado de rua de Lisboa. Ali vende-
-se um pouco de tudo, com destaque para as velharias.
Campo de Santa Clara > ter, sáb 9h-18h
Mercado de Santa Clara
No lugar onde outrora se vendiam hortaliças, fruta e peixe, há agora exposições temporárias. Já à volta do edifício do mercado, abriram, entretanto, lojas de velharias, de roupa, uma chocolataria, alfarrabistas, artesanato… Não têm dias nem horário fixos de abertura, mas em dias de Feira da Ladra, às terças e aos sábados, estão de portas abertas. No primeiro piso, encontra-se o restaurante Santa Clara dos Cogumelos. Campo de Santa Clara