Num lugarejo tão minúsculo, integrado numa freguesia de pequena escala pertencente a uma ilha que não é das maiores, a notícia rapidamente se espalha. Serafim nasceu, mas nasceu diferente dos outros. Diz-se, e o boato mais tarde confirmou-se, que nascera sem “as origens” e que, por isso, teria certamente sido tocado pela divindade.
É o nascimento de Pouquinho, como também ficou conhecido, que põe em marcha o mais recente romance de Valter Hugo Mãe, Deus na Escuridão, já nas livrarias, com a chancela da Porto Editora. O escritor está de regresso à realidade portuguesa, depois de três romances a escrever sobre territórios alheios: esteve na Islândia, com A Desumanização; no Japão, com Homens Imprudentemente Poéticos, e no outro lado do Atlântico, com As Doenças do Brasil. E não quis encerrar este ciclo de romances, que agora vê que forma uma tetralogia, sem um enredo nacional. Todos estes livros tratam de “irmãos, ilhas e ausências”, de solidão e de deslocamento, de amor e do lugar que se acaba por encontrar no mundo.
Durante muito tempo, Valter Hugo Mãe achou que, a ter de escolher uma ilha portuguesa – tem uma paixão especial por esses territórios rodeados de água e com vizinhanças intensificadas –, acabaria por aportar nos Açores. “Cresci a tentar apaixonar-me pelos Açores”, diz à VISÃO, entre sorrisos. “E adoro todas as ilhas que conheço, são magníficas, mas nunca criei com elas uma relação suficiente para lhes dedicar um romance.”
A vida trocou-lhe os planos e inventou-lhe uma relação intensa com a Madeira. Viajou até ao arquipélago, repetiu a experiência, voltou a ser convidado, fez amizades que depois se cimentaram. Aos poucos, abandonou os circuitos mais turísticos e aventurou-se pelos pequenos segredos que só os locais conhecem.
No meio desse diálogo pessoal com a ilha, conheceu Luísa Reis Abreu, senhora de idade respeitável, que vive na freguesia do Campanário. Foi amor à primeira fala. “Desde a primeira vez que ouvi a sra. Luísa Reis Abreu a falar, há muitos anos, fiquei fascinado com os vocábulos e as construções frásicas mais estranhas que usa. Ocorreu-me imediatamente que ela era uma espécie de Shakespeare do Campanário e da ilha da Madeira”, recorda o escritor. Estava encontrado o caminho para um novo romance.
Ser outro
Através da fala de Luísa Reis Abreu, que, de certa forma, se recria e se reinventa no romance, num apurado trabalho de linguagem, Deus na Escuridão aproxima-se de uma realidade que é ao mesmo tempo familiar e distante: “O seu universo é novo e diferente, mas com o qual nos conseguimos relacionar; é a nossa língua, o nosso país, mas impressionou-me trazer uma dignidade à solta.”
Foi essa tensão na linguagem e no viver, no reconhecimento e na estranheza, que cativou Valter Hugo Mãe. Mesmo quando se centra na realidade nacional, só o que lhe é mais alheio estimula a sua escrita. “É a diferença que continua a interessar-me”, garante. “Em alguns textos, tenho falado numa certa emigração literária, na ideia de deslocação através dos textos, que me obrigue a não ser habitante do lugar que efetivamente habito. Não é diferente quando se trata do universo português: também aqui continua a mover-me a saída.”
Essa vontade de ser outro é tão forte que chega a pensar se seria “decente escrever um livro sobre as Caxinas e as pessoas do mar”, que tão bem conhece. Nascido em Angola, em 1971, Valter Hugo Mãe cresceu em Paços de Ferreira e em Vila do Conde, tendo a família fixado residência não muito longe daquele conhecido bairro de pescadores. “Mesmo que quisesse escrever esse romance, não sei se seria capaz. A visão é tão ampla que não consigo focar ou fazer uma triagem para decidir o que contar. Ao escolher uma lonjura qualquer, tenho a sensação de que vou atrás do que mais imediatamente me impressiona, atormenta e espanta. Assim, a eleição do que devo contar fica mais visível. É como se pudesse explicitar o fascínio.”
Dentro da lonjura da freguesia do Campanário, na costa sul da Madeira, tão perto e tão longe do Funchal e do quotidiano das cidades, encontrou o cenário para uma história de irmãos e de laços familiares. Pela sua especificidade e mistério, Pouquinho é o centro da pequena casa em que habitam Mariinha, Julinho, mãe e pai, e Paulinho, seu irmão. É este que narra os acontecimentos, desde o nascimento até à saída de casa, passando pela santidade que crescerá à sua volta, num arco narrativo que começa em 1981 e se alarga até 2001.
“É-me muito importante trabalhar a ideia de família, mas problematizando-a. Não nos casamos com a família, mas com pessoas que, de início, não conhecemos de lado nenhum. Valorizo muito essa amplitude e disposição afetiva para um universo mais alargado de pessoas”, adianta Valter Hugo Mãe. “Nos meus livros, tento sempre mostrar que a família é uma coisa bastante escangalhada e complexa. Pode ser montada de mil maneiras. E a argamassa é o amor, o metal fundente de que falava o Cesariny.”
O Deus na Escuridão, que se evoca no título, é uma metáfora desta ideia de família e do que deve estar no centro de tudo. “De uma forma estranha, este livro é sobre as mães. É o amor dela – o amor supremo – que está em causa no livro. O amor das mães é o único que pode ser comparado ao de Deus.” Um amor divino que, acredita, todos devemos perseguir.