Autora das frases perfeitas, dos livros sublinhados, tanto por intelectuais como pelo cidadão comum, Carla Madeira viveu muitas vidas até se transformar na escritora mais lida do Brasil. Nascida em Belo Horizonte, em 1964, começou por estudar Matemática, como o pai e os irmãos, todos de ciências “exatas”. Tinha facilidade e prazer nos desafios da lógica. Mas o amor pelas artes, o violão, a composição e a pintura puxavam com mais força, e a impossibilidade de conciliar tudo foi plantando uma tristeza que desembocou numa mudança de carreira.
Escolheu comunicação, na vertente da publicidade, esperando assim conseguir combinar as várias artes. Deu aulas de Publicidade, abriu uma agência, continuou a pintar, a cantar e a dar espetáculos, até que a história de Tudo é Rio, a sua primeira obra, começou a tomar forma. Quando o acontecimento central na história lhe surgiu, paralisou, não teve coragem de continuar. Só em 2014, 14 anos depois, voltou ao livro, que terminou de escrever em oito meses, lançando 700 exemplares, em edição de autor. Números que a cada reedição se multiplicavam, até se ver obrigada a mudar para uma editora maior, com capacidade de distribuição para todos os cantos do país.
Com três obras publicadas (em Portugal pela Infinito Particular) e mais uma a caminho, os seus livros começam agora a ser editados fora do Brasil, com Itália a seguir-se a Portugal. Também já está acordada a versão cinematográfica de Tudo é Rio. E o formato de série para A Natureza da Mordida e Véspera. O que lhe dá um certo frio na barriga, confessa. “Tenho de me preparar e aceitar que o livro é meu, o filme não é meu.”
A sua escrita é de frases curtas, fortes, que permanecem, como os slogans. É uma herança da sua carreira na publicidade?
Sim, tem tudo a ver. Tenho um grande treino com a linguagem. Fui professora da universidade federal, em publicidade. Realmente, tenho isso na minha formação, uma facilidade com a síntese, com a frase curta, mas que contém uma força imagética.
Outra característica da sua obra é ser muito transversal. Os seus leitores tanto são a elite cultural como o cidadão comum. Houve um poderoso fenómeno de passa-a-palavra. Qual a sua explicação para isso?
Tenho pensado nisso. É difícil tentar enquadrar o Tudo é Rio num nicho. É poético, mas também é cru.
Essa crueza é muito evidente nas descrições do sexo, por exemplo.
Exato. Não se poupa o leitor de ir junto, para as cenas eróticas. Não tem…

Uma cortina, um biombo.
Como se diz no cinema, a câmara não sobe, fica ali na cena. O livro tem o sagrado porque toca as questões da religiosidade e também o profano. Tem uma extrema complexidade nos sentimentos, nas questões humanas. Mas uma forma simples de tocar nestas questões. Esta foi uma intencionalidade muito presente ao longo da escrita. Não quis usar nenhuma palavra que uma pessoa tenha de ir ao dicionário pesquisar. E isto até foi, por vezes, mais trabalhoso para mim. Porque queria simplicidade. Independentemente de a pessoa ser um académico ou alguém com pouca escolaridade, há essências da condição humana que toda a gente capta, intui, sente. Há uma certa universalidade que me parece muito interessante. Vejo pessoas muito sofisticadas, intelectuais, psicanalistas, que gostam muito do livro; agrada-lhes que o tenha levado a prisões, no Brasil.
Independentemente de a pessoa ser um académico ou alguém com pouca escolaridade, há essências da condição que toda a gente capta, intui, sente
Foi às prisões falar sobre o livro?
Sim. No Brasil, há um programa que permite redução da pena mediante a leitura de livros e apresentação de relatórios sobre as leituras. É um projeto muito bonito!
Realmente…
Não é aleatório. Os livros são selecionados, há um mediador. Portanto, fui a uma prisão e foi muito impressionante, sabe? Muito impressionante mesmo! Tive um pouco de medo porque pensei “como é que vão levar um livro com uma grande carga erótica para uma prisão?” E não é que foi uma experiência muito bonita? No final de uma sessão, perguntei: “O que é que o livro vos deu?” E um preso disse: “Depois de ter lido Tudo é Rio, parei de odiar.”
Uau!
É! Foi muito bonito.
Em Tudo é Rio, vejo redenção, esperança. Mas também há quem veja culpa, castigo, maldade. Para si, o que é?
Na verdade, não é uma coisa ou outra. Talvez estejam lá as duas. Há, de facto, uma história muito brutal, um processo de adoecimento, de uma relação em que havia confiança e afeto e que desmorona, de uma forma brutal. E este é o grande acontecimento do livro. Como autora, o meu papel é olhar para este acontecimento, estar disponível para ele, não julgar, mas tentar compreender o que vem antes e depois. O que faz a pessoa fazer o que fez, quais as circunstâncias da vida que a levaram até ali. Porque, teoricamente, todos nós nascemos com esse potencial de bem e de mal. E porque é que certas pessoas fazem um caminho, enquanto outras fazem outro. Porque a situação é imperdoável, não é? Quando digo “imperdoável”, falo de todas as questões que o perdão envolve, a começar por essa ideia de que o perdão existe para lidarmos com o imperdoável. Se se trata de algo perdoável, então talvez não precise de perdão. Basta uma boa conversa, uma gentileza.
Uma compensação, eventualmente…
Exato! Uma negociação. Mas o imperdoável é aquela coisa em que realmente não existe punição possível, suficiente para dar conta daquilo. E também é irreversível. Não é uma coisa que se possa consertar. E também não é algo que eu possa acordar e dizer: “Ah, vou perdoar-te.” Até posso comportar-me como quem perdoa, mas perdoar mesmo… de onde vem isso? Enquanto o perdão não acontece, existe o ódio. E o ódio coloca-nos na mão do agressor.
Pode considerar-se que é uma escritora tardia. Tanto pela altura de lançamento do seu primeiro livro como pelo próprio reconhecimento, que não foi imediato.
Fui uma escritora tardia, mas sou, desde muito nova, uma pessoa extremamente ligada a linguagens artísticas. Não sentia era a necessidade de publicar. Na realidade, as minhas primeiras linguagens foram a música. Toquei violão muitos anos, compus muito, cantei, fiz espetáculos. Também pinto. Em pequena, achei que tinha escrito um livro, lá para os 10, 12 anos. Lembro-me muito bem, tanto da história como do gesto, porque escrevi à mão; não existia computador. Mas nunca fui de escrever poesia.
Diz-se que os escritores escrevem sempre sobre eles próprios. Do que conheço da sua biografia, excetuando a questão da matemática, no Véspera, não encontro ponto nenhum em comum com os seus livros, que são sobre dureza, violência, pobreza. Que não é nada do que é a sua vida, pelo menos do que é público?
Véspera terminava com a frase “imaginar é sempre revelar um pouco de si mesmo”. Tem razão: escrever é sempre uma colagem, são sempre fragmentos de coisas que se viu ali, viu aqui. É sempre sobre coisas que te afetaram. Há sempre duas forças muito claras quando escrevemos: a imaginação e a curiosidade.
A memória está no território das coisas que nos afetam. Convivi com a violência doméstica na minha família, e isso foi muito marcante
E a memória, não?
Memória? Sim, é isso. A memória está nesse território das coisas que te afetaram. Mas a memória entra mais como uma ferramenta. Não dá para imaginar sem uma base.
Está a alimentar a imaginação?
A alimentar e a dar asas, dando possibilidades. Convivi com a violência doméstica na minha família, e isso foi muito marcante. Um tio meu batia na mulher de forma recorrente. E a minha tia não conseguia sair dessa situação. Talvez isso me tenha marcado, bem como o julgamento que se fazia relativamente ao facto de ela não se ir embora. Havia comentários como “mulher de malandro gosta de apanhar”. Escrever é um processo criativo fragmentado. Costumo dizer que a minha mãe é uma matriz do feminino para mim. E isso não quer dizer que as mulheres se pareçam com ela, não é por semelhança. Pode ser por antagonismo. Às vezes, há situações familiares demasiado idealizadas, famílias demasiado perfeitas e que, depois de uma certa idade, a pessoa começa a encontrar os podres. Tudo isso alimenta a imaginação e a curiosidade.
As suas personagens ficam connosco, sentimo-las. Isto apesar de não haver descrição física delas. Qual foi a intenção de não oferecer detalhes físicos?
Só comecei a pensar nisso a partir dos comentários dos leitores.
Não foi intencional, então?
Não, não foi uma decisão racional. Mas eu tenho essa característica de ser de pouquíssimas descrições. As pessoas costumam dizer: “Tudo é Rio tem de virar filme porque eu enxergo aquela história.” E, no entanto, tem pouquíssimas descrições físicas. Portanto, o que as pessoas valorizam é muito mais esse estado que está dentro da personagem: o jeito de caminhar, uma pequena pausa, um silêncio, pequenos gestos.
Até o espaço e o lugar são indefinidos.
No caso de Tudo é Rio, foi bem intencional, sim.
Apesar disso, é bastante óbvio que a ação se passa no Brasil. Aliás, só podia passar-se no Brasil. O que não tem impedido os leitores portugueses de se sentirem próximos do livro. Como explica isso?
Pois é! Isso é que eu gostava de vos perguntar [risos]… O que mais me tem impressionado é o livro estar a fazer uma história bonita aqui em Portugal. Julgo que isto diz muito do caráter universal da obra. Tocamos sentimentos, questões que são universais.
Em Tudo é Rio, a palavra “rio” aparece muitas vezes no livro…
Sim, a metáfora da água.

O título já estava definido à partida e daí esta propagação da palavra ao longo da obra?
Não. Tinha outros títulos, todos ligados à humidade, à água, ao escorrer, mas não, não estava definido. Até ao dia em que encontrei essas palavras em Heráclito, a metáfora do rio, que o rio nunca é o mesmo. Quando estava a escrever Tudo é Rio, estava muito impressionada com uma visão de um biólogo chamado Humberto Maturana, sobre uma certa ideia de que as emoções são sempre no corpo, uma espécie de paisagem interna. É como se eu fotografasse um momento emocional seu e dissesse que essa emoção tem a ver com determinadas coisas derramadas, determinadas hormonas, adrenalina, como se fosse uma paisagem interna desses rios, desses volumes. Isso marcou-me muito.
A última frase em Tudo é Rio é sobre Deus.
Deus estava de volta.
Isto significa que a religião é importante para si?
Tudo é Rio e Véspera são atravessados pela religião. É da minha história, é biográfico. O meu pai foi religioso e, depois, abandonou a vida religiosa para se casar. Foi irmão marista, ligado ao catolicismo. Essa é uma questão que fica para sempre. O meu pai manteve a fé, uma fé difícil, porque era matemático. Fui muito atravessada por essa questão da fé e da dúvida também. Foi-me muito caro conquistar uma certa liberdade de acreditar, de ter uma espiritualidade, mas não ter uma religião institucional. Para mim, foi muito difícil conquistar esse lugar.
Mas agora está confortável com a sua religiosidade?
Acredito, tenho fé, rezo, peço proteção, agradeço. Quero manter contacto com a minha espiritualidade, medito. Mas não tenho uma religião e tenho profundas críticas às instituições religiosas.
O seu segundo livro, A Natureza da Mordida, é completamente diferente do primeiro. Na linguagem, nas descrições…
Quando acabei Tudo é Rio, achava que ia ficar sem escrever, que já não tinha mais nada para dizer. Mas, aí, passou algum tempo, pouquíssimo tempo, na verdade, e comecei a ver-me com Biá, com Lívia. Queria um livro completamente diferente, não queria a mesma carga poética. Até brincava e dizia “quero fazer um livro que as pessoas não sublinhem”. Depois, percebi que sublinham na mesma.
Mas, nesse caso, talvez não sejam as frases, mas parágrafos inteiros, ideias.
É isso, sim. É um livro de que gosto muito. Disseram-me uma vez, e eu costumo replicar, que é um livro para se ler uma vez e meia. Quando se conhece a história e se volta ao livro, vive-se uma experiência muito diferente.
Está a escrever um quarto livro. O que poderemos esperar?
Não queria estar a escrever, queria ficar dois ou três anos sem escrever. Só que neste ano vivi alguns lutos. Perdi a minha mãe, o meu psicanalista, e a minha sócia adoeceu. Não falo nada sobre isso no livro. Mas é claro que este luto está em mim, no meu corpo. Tornou-se muito nítido como a linguagem é um recurso para eu lidar com o real.
Os livros
Os três romances de Carla Madeira estão publicados em Portugal com a chancela da Infinito Particular
Tudo é Rio 2014

Primeira obra de Carla Madeira, esteve 14 anos “na gaveta”, até ser publicada, em modesta edição de autor, em 2014. Passada num Brasil sem tempo nem lugar definidos, conta a história de um triângulo amoroso entre um casal e uma prostituta. Em frases curtas e que ficam na memória, fala-se sobre culpa, perdão, danos irreparáveis e, claro, sobre o amor.
A Natureza da Mordida 2018

Neste segundo livro, Carla Madeira quis demarcar-se do primeiro, tentando evitar as frases que os leitores tivessem vontade de sublinhar. Só que não resultou. Em vez de frases, sublinham-se parágrafos inteiros desta conversa entre uma psicanalista reformada e uma jovem jornalista.
Véspera 2021

A história acontece a dois tempos: um presente em que uma mãe abandona um filho, por segundos, mas com consequências trágicas; e um passado em que se relata a vida de dois gémeos, idênticos por fora, mas opostos na personalidade. A matemática tem um papel importante na trama – a autora é filha de um matemático e começou por seguir esta área.