Ir ao Algarve por estes dias é poder apreciar tudo o que ele tem de bom, sem a confusão dos veraneantes que costumam estragar a pintura. Claro que quem está à frente de negócios ligados ao turismo não há de concordar com a frase inicial deste texto. Mas nem por isso, encontrámos um Leonel Pereira triste por ter a sala quase vazia num dia de semana. Estava antes entusiasmado, metido dentro da sua nova coqueluche: a garrafeira que há de estar pronta não tarda mesmo nada. Quando lá estivemos, a tinta preta das paredes ainda deitava cheiro e faltavam as prateleiras que hão de sustentar as mais de duas mil referências que, por enquanto, ainda se encontravam escondidas na cave. Não admira que o sommelier Vítor D’Avó não consiga deixar de sorrir: “Sonho com uma coisa destas há 22 anos.”
De resto, na sala deste restaurante em Vale de Lobo, perto da Quinta do Lago, nada de novo. Ou melhor, nada de novo desde há quatro anos, tantos quantos este chefe está aos comandos. Porque primeiro fizeram uma esplanada, depois arejaram a sala de jantar onde pode apreciar-se a cozinha de produto que carrega uma merecidíssima Estrela Michelin. “Se me disserem que a minha comida não tem sabor, corto os pulsos”, avisa de antemão o chefe.
Quais spoilers, dizemos já que não haverá final trágico. Se alguém cortasse os pulsos, seríamos nós, porque temos de deixar a mesa do São Gabriel e voltar para Lisboa. No bloco trazemos a boa nova de que Leonel Pereira continua na sua saga de criar mais alguns enchidos do mar, que se juntarão à morcela de choco (se não me dissessem, juraria que era uma morcela tradicional) ou à chouriça de salmão com camarão. Aguardemos, pois.
Comemos como os peixes
Enquanto vai e não vai, ajeite-se na cadeira para se dedicar ao rol de pratos que vão passar por este texto. O menu momentos improváveis (€95) nunca se fica por menos de dez: seis entradas, carne, peixe e duas sobremesas. E mais uns miminhos à mistura. A começar pelo flat bread com óregãos e pela manteiga, que muda todas as semanas de sabor (apanhámos uma de cogumelos viúvas negras e trufa e outra com flor de sal). O pão (provámos o de azeitonas sem sal) também pode variar e é todo feito na cozinha, perfeito para molhar no azeite Malhadinha (todos os meses, a marca é diferente, sempre nacional).
O primeiro snack na realidade são dois, ambos com sabor salgado: uma ostra fresca da Ria Formosa sobre açorda de coentrada e hóstia de tinta de choco, molho de mar e camarinha desidratada. “Estou na minha zona de conforto, 80% do que cozinho vem do mar.” E nós agradecemos essa preferência.
Ainda estamos a pensar como os pequeninos camarões da ria nos encheram as medidas e já ali está outro snack para nos tirar as certezas. Porque ao contrário do outro, enganamo-nos muito e estamos sempre com dúvidas. Desta vez, a dúvida chegou em forma de rissol – rissol de plancton com anchova curada. É disso mesmo que se trara, da comida microscópica que alimenta os peixes. Neste caso, os peixes somos nós e mais uma vez sentimo-nos privilegiados por isso.
Valerá a pena realçar a beleza daquilo que estamos a comer? Desde os pratos onde repousam as iguarias, aos talheres especificamente selecionados para cada momento ou à forma como se dispõe a comida – por entre búzios e outras conchas, no caso do rissol – tudo se conjuga para nos inebriar. Tamanha elegância, no entanto, não nos inibe de experimentar algumas coisas com a mão, seguindo a sugestão do chefe.
Talheres dourados e laranja do Algarve
No momento que se segue, começamos pelos legumes biológicos, aqui representados por quatro tipo de cenouras cruas e um pouco de nabo. Disse-nos o chefe que são produzidos especialmente para o São Gabriel, numa quinta algarvia. Trata-se apenas de um parêntesis que envolve um belo carabineiro cozido em água do mar durante 18 segundos – que agora está mergulhado num caldo de porco Bísaro (é agora que percebemos bem o termo improvável colado ao menu). “Fartei-me do porco preto, que se pode comer em qualquer lado. Decidi reabilitar esta espécie transmontana, que é menos intensa e gordurosa.”
A dobrada de choco traz as primeiras favas do ano, creme de chícharos e o tal enchido que parece morcela, mas na realidade é feito de mar. Mas também tem bucho, que se confundo com o choco – há que estar atento às texturas, se se quiser alinhar na brincadeira. “E se os dentes ficarem pretos, há escovas na casa de banho”, diz o chefe, pois é o que costuma argumentar com as senhoras que tentam furtar-se a provar esta sua criação.
Logo depois, há que comer o salmonete, está na temperatura perfeita, 49 graus. À sua volta, molho de ouriço do mar com fígados de salmonete, cogumelos orelhas de Judas e quiabos salteados. Alguns legumes quase sem sabor são desfeitos em pó para parecer carvão e trazer a grelha para este momento improvável. “Concordo que seja difícil comer os quiabos, mas gosto de os ter aqui como provocação. Vivi quatro anos no Brasil e habituei-me a eles.”
As castanholas, fiquem a saber, são consideradas as partes nobres do porco, e vêm aqui ao lado do não menos nobre foie gras. As castanholas, fiquem a saber e sem nojos, por favor, são as amígdalas do animal e sabem que nem ginjas, muito mal comparado, claro. Não sem antes passarem 40 horas ao lume e se tornarem em algo divinal.
Depois desta experiência, ou momento, a coisa podia acabar que já iríamos felizes e satisfeitos. Mas o chefe Leonel ainda quis mostrar o seu Bísaro, uma receita que não consegue tirar da carta sem ouvir reclamações. Aqui, ele aparece depois de estar 30 horas a ser cozinhado e ao lado de pickles de couve de Bruxelas, presunto Pata Negra, quadradinhos de laranja, cremoso de couve roxa e creme de Pata Negra com Pêra Rocha. E ainda batata baunilhada em molho pimenta. Tudo muito certo, mas não deixámos o prato limpinho como até aqui tinha acontecido. Ainda nos esperam dois momentos doces e uns petits fours lindos de morrer, que não podem ficar na mesa.
Primeiro servem-nos os morangos no carvão, com líchias e queijo de alfazema, num consomé do mesmo fruto vermelho citado na quarta palavra desta pormenorizada descrição. E é pelo nariz que a sobremesa nos conquista, porque o seu aroma torna-se irresistível e a sua frescura faz-nos sonhar com o verão. O último momento deste desfile tem base nas cascas de laranja do Algarve (a melhor do mundo, segundo o chefe), mas são os talheres banhados a ouro que nos ofuscam. Depois de um desfile destes, rematar a refeição com tal fineza faz-nos querer pôr também um ponto final. E deixar o leitor a remoer com esta elegante imagem dourada e muito sabor algarvio.
São Gabriel > Estr. de Vale do Lobo, Almancil > T. 289 394 521 > ter-sáb 19h-22h30, dom 12h30-14h30