Terminado o Festival ao Largo, que durante o mês de julho levou a ópera, a dança e a música de cena ao exterior do São Carlos, o normal seria o teatro encerrar as portas durante o mês de agosto. Mas, este ano, não é assim. O Centro Histórico do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) organizou as Noites em São Carlos, uma exposição sobre o teatro, com materiais originais, que ocupa espaços nunca ou raramente vistos pelo público.
Dividida em nove núcleos, a mostra inclui peças de guarda-roupa de cena, cenários, figurinos, maquetas, partituras, fotografias, caricaturas e uma instalação, ao longo do foyer, sala principal, palco, camarins, corredores das frisas e salão nobre. “É isto que torna inédita esta exposição”, explica-nos o comissário Fernando Carvalho. “Por outro lado, é a primeira vez que recuamos, em termos cronológicos, até ao início do São Carlos”, continua, “algo só possível com a colaboração de alguns particulares e de instituições nacionais de relevo”. Como a Biblioteca Nacional de Portugal, de onde veio o documento exposto no foyer que dá conta da inauguração do Real Theatro de São Carlos em 1793, apenas seis meses depois do início da sua construção. Ou o Museu do Banco de Portugal, que emprestou dois patacos, uma moeda cunhada por todo o Império no início do século XIX, cujo nome deu origem a uma expressão bem conhecida por todos. Feitas em bronze, eram por isso razoavelmente pesadas e o povo batizou-as de patacão. Além da sua natural função, para quem vinha à ópera serviam também para manifestar o seu desagrado quando o cantor ou a cantora desafinava, atirando-os à cabeça dos ditos – E daqui nasceu a expressão levar ou dizer uma patacoada.
Ao longo dos 219 anos de existência do TNSC houve alguns interregnos, mas o mais significativo foi o que se verificou entre 1934 e 1940. A precisar de obras, o edifício foi encerrado durante seis anos e remodelado para um melhor aproveitamento dos espaços, reabrindo com a ópera Dom João IV, do maestro português Ruy Coelho, inicialmente batizada de 1640.
Subir ao palco
Em noite de ópera, manda a regra que não pode haver atrasos. Logo, se a récita já se iniciou, há que aguardar pelo intervalo para se entrar na sala. Mas até 4 de setembro, a regra não se cumpre e as portas da sala principal do São Carlos vão-se abrindo ao sabor dos visitantes. A sala está cheia, e não seria para menos. Afinal é Maria Callas que dá voz a Cio-Cio San, de Madama Butterfly. Tudo isto é verdade, mas com algumas nuances. É o sistema de som que reproduz a interpretação da diva e a mancha de público que ocupa a plateia e camarotes é uma instalação de artes plásticas e vídeo concebida por sete artistas da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, sob a curadoria do professor José Quaresma. Da plateia é possível subir ao palco e experimentar a sensação única de estar em cena com uma das mais célebres óperas de Puccini. “Não recriámos nenhum ato, quisemos antes mostrar ao público o magnífico guarda-roupa, pertença do teatro, e o trabalho do figurinista português Hugo Manoel, utilizando os trajes de cena adquiridos na Casa Hayashi Kimono de Tóquio, em 1976”, explica Fernando Carvalho. Para a montagem dos quimonos, o teatro contou com a ajuda da Embaixada do Japão.
Os bastidores
A saída de cena faz-se pela coxia direita em direção às zonas reservadas a cantores e a todos os outros que aqui trabalham e fazem o espetáculo acontecer. Os únicos elementos estranhos são os rostos pintados nos quatro quadros de cena da ópera Roberto Devereux, de Donizetti, que nos fitam à nossa passagem. De resto, tudo foi deixado tal e qual… E um olhar mais atento à dimensão das vigas que sustentam o palco há 219 anos, não nos deixa indiferente.
Na grande oficina, o que foi imaginado pelos cenógrafos toma forma num misto de carpintaria, serralharia, pintura, depósito de peças soltas e telões de mais de uma centena de óperas que preenchem prateleiras sem fim. “Estão em bom estado”, garante o comissário, “tal como o prova parte do telão da ópera Aïda, de Verdi, exposto no foyer, mas estariam muito melhor se a promessa de arranjar um local com outras condições feita há 20 anos por um Secretário de Estado se tivesse concretizado”…
A tarefa de idealizar uma exposição implica estabelecer critérios. Por isso, na hora de selecionar os cantores portugueses a homenagear nos seis camarins de palco, através de trajes de cena, adereços por eles usados e objetos de uso pessoal, Fernando Carvalho teve que se cingir àqueles de quem havia material disponível. “Não porque tenham desaparecido, mas porque faziam parte de produções importadas e que foram depois devolvidas, ou porque foram alvo de adaptações deixando o original de existir”, justifica. Foi assim que se chegou a Francisco e António de Andrade, Tomás Alcaide, Álvaro Malta, Carlos Fonseca, Elisete Bayan, Maria Cristina de Castro, as irmãs Zuleika e Elsa Saque, e Elisabete Matos. O mesmo se passou com cenógrafos e figurinistas portugueses – Abílio de Mattos e Silva (do qual é possível conhecer mais sobre a vida e obra no museu a ele dedicado em Óbidos), Hugo Manoel e Vera Castro – aos quais foi reservado o Salão Nobre. E a outros grandes nomes da ópera, uma seleção de 80 fotografias, entre 1947 e 1976, e uma galeria de caricaturas recordam a sua passagem pelo Teatro Nacional de São Carlos.
A exposição Noites em São Carlos é, no entanto, apenas uma pequena mostra de um vasto património cultural que é também a história da ópera. “Atualmente, o arquivo documental e de guarda-roupa do Teatro de São Carlos assemelha-se à gaveta da confusão que todos temos em casa. É fundamental que se crie um espaço digno para acolher este património e, mais importante ainda, que se inicie o quanto antes um trabalho científico de inventariação.” Até lá, vão valendo as memórias de quem dedicou uma vida ao São Carlos e o empenho em concretizar vontades…
Noites em São Carlos Teatro Nacional de São Carlos R. Serpa Pinto, 9 T. 21 325 3000 Até 4 Set, Qua-Seg 11h-19h €3, €1 (6-12 anos), grátis para menores de 6 anos