Nunca quer saber o programa antes de comprar, religiosamente, os ingressos.
Rafael Alves Rocha procura o efeito surpresa e as Quintas de Leitura nunca o desiludiram. Quando começou a frequentá-las, há três anos, o assessor de comunicação tinha uma relação distante com a poesia. Algo que “mudou radicalmente, ao vê-la verbalizada por quem sabe”. Conhecia apenas os autores consagrados e desde então descobriu a capacidade de regeneração da literatura portuguesa. “Lembro-me de espetáculos completamente diferentes, alguns a roçar a surrealidade, mas tão bons!” Rendeu-se à presença da escritora Inês Pedrosa, aos poetas malditos lidos pelo ator Miguel Guilherme, à apresentação deliciosa do geógrafo Álvaro Domingues, à forma extraordinária como o ator Pedro Lamares declamou o poema Todos os homens são maricas quando estão com gripe, de António Lobo Antunes. “Foi de tal maneira vibrante, com variações de ritmo e de tom, que quis saber dizê-lo com a mesma intensidade.” Este ano, inscreveu-se nos Laboratórios de Leitura Poética, igualmente organizados pelo Teatro do Campo Alegre (TCA). “Para estar ainda mais próximo da poesia.”
Os habitués das Quintas de Leitura – e são muitos – não estranham certamente este encantamento. Desengane-se quem esteja à espera de um sarau poético convencional e pomposo. A provocação pontua, com strippers a rematar cenas com nus totais ou Rui Reininho a simular beber urina.
“As Quintas estão muito perto dos lugares impossíveis, do inexplicável, da utopia”, acredita Isaque Ferreira, um dos leitores mais marcantes das sessões. Tinha passado por outras noites poéticas, era um apaixonado pela literatura, mas ali encontrou algo que não estava entregue ao acaso e à informalidade. Havia um forte “cicerone”, João Gesta, garante de rigor e profissionalismo, sem condicionar o fascínio pela palavra dita. “Tem a particularidade prodigiosa de saber convergir as pessoas num determinado sentido, coadjuvado por uma equipa atenta às coisas mais básicas, desconstruindo o que é fazer com gosto.”
O sucesso das Quintas, com sessões sucessivamente esgotadas, tem para Gesta uma explicação: “A linguagem dos nossos políticos é desinteressante, previsível, falaciosa. Em alternativa, temos a linguagem dos poetas, da verdade, do calor, dos sonhos.
Durante estas horas, as pessoas encontram alguma paz de espírito.”
Casamentos únicos
Criadas durante a Porto 2001, com Jorge Velhote nos comandos, logo no ano seguinte João Gesta assume a função de programador.
“Diziam-me que era impossível fazer as pessoas pagarem para ouvir poesia, porque havia a tradição das tertúlias poéticas.” Mas Gesta queria mais do que umas mesas de um café. Queria adotar um modelo profissional, com uma dimensão espetacular, dando a palavra aos nossos poetas e misturando-os com artistas de outras áreas de expressão, da dança às artes visuais.
Cerca de 95% dos espetáculos são feitos de raiz e pensados para o palco do TCA exceção para os do cómico Pedro Tochas. Exportar as Quintas para outros teatros, como tantos pedem, é algo improvável. “Vejo-as como casamentos únicos, feitos para um só dia.”
As sessões são pensadas com cerca de seis meses de antecedência. Quando há um poeta convidado, discute com o programador o guião das leituras, ouve e sugere nomes de artistas. “Se me pedem o Elton John, digo logo que é impossível. Mas, se estiver dentro do orçamento, não hesito. Nem sempre gosto das bandas, mas fico contente que o poeta se sinta reconfortado.”
Repetidamente, as Quintas receberam em palco artistas a desbravar carreiras. E viu-os crescer. Entre os músicos, nomes como Dead Combo, Old Jerusalem, Mazgani, Samuel Úria, Oquestrada causaram admiração. “Hoje não tenho dinheiro para lhes pagar o cachet“, diz Gesta. Recorda-se, por exemplo, da primeira participação dos Dead Combo, que rapidamente venderam no foyer do Campo Alegre uma caixa de 50 cd’s, a única que tinham. Nas artes performativas, Mónica Coteriano, Tânia Carvalho, Sónia Baptista, Victor Hugo Pontes tornaram a experiência das Quintas mais rica. Para a cantora Ana Deus, este é “um lugar de experimentação, onde tenho o conforto de estar técnica e humanamente bem assistida”. Nas suas participações, já utilizou projeções, gravadores, minidiscos, loops.
Estabeleceu muitas relações de amizade e de trabalho duradouras. E, sobretudo, “se faço algo melhor agora, é cantar em português, aliando a música aos bons autores”.
Vozes com alma
Fundamental numa sessão das Quintas, é a escolha de quem lê os poemas. Os critérios podem ser surpreendentes. Dicção, presença, carisma? “Mais de metade dos poetas pedem-me mulheres bonitas”, revela João Gesta. Muitos não gostam de ter atores, acusando-os de tiques de colocação de voz ou pose demasiado estudada. E poetas como Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira ou Daniel Maia-Pinto Rodrigues também participam ativamente, e bem, das leituras.
A predileção do recitador Isaque Ferreira pelo lado mais sarcástico, acutilante, transgressivo e humorístico serve bem as suas leituras. A emoção é visível quando se recorda de algumas experiências mais perturbadoras.
Ao declamar um texto violento de Luíz Pacheco, atingiu um grau de catarse tão elevado que, ao sair do palco, embateu contra uma parede e uns projetores. “Fui estraçalhado por aquelas palavras.” Percebeu, mais tarde, que a intensidade do momento passou para a plateia. “O público é o meu combustível, preciso de sentir do outro lado a perplexidade, a perturbação ou o riso pleno e entusiástico.” Isaque, que trabalhava no ramo da hotelaria, descobriu nas Quintas “a capacidade de correr riscos, de seguir trajetos menos óbvios”. Já teve uma sessão em seu nome, Isaquetamente, feita a partir das suas escolhas poéticas. E, hoje, encabeça projetos poéticos noutras latitudes.
Mas o elenco nas leituras sofre uma renovação constante. Em 2009, por exemplo, fezse um casting de recitadores com cerca de 250 candidatos. Desses, 30 foram escolhidos e vão alimentando os espetáculos. Paralelamente, organizaram-se quatro edições dos Laboratórios de Leitura Poética Há palavras que nos beijam, ações de formação que permitiram descobrir novos valores.
Revelações poéticas
Em janeiro último, Valter Hugo Mãe encheu, pela oitava vez, o auditório do TCA. Ouviu-se-lhe uma longa declaração de amor a João Gesta com ursinho de peluche incluído, que conheceu aos 24 anos, quando era “um monte de ossos empilhados dentro de roupas sempre largas e um livro na mão”. A tremer, deu-lhe na altura o seu primeiro livro de poemas. Em resposta, Gesta “dizia que me achava verdadeiro, e isso tem de ser o melhor elogio de todos”.
A amizade foi-se alimentando mutuamente e, hoje, Valter reconhece ao programador “o dom de conciliar opostos, sempre magnificamente juntando pessoas e artes de sentidos tão diferentes de modo a que tudo resulte mais integrador, mais permissivo, sem preconceito, equilibrado”. E dedica a toda a equipa das Quintas, no folheto lançado para a festa dos 11 anos, “um abraço de admiração e gratidão”.
Outros poetas da nova geração deram-se a conhecer nas Quintas. Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, Filipa Leal, Miguel Manso, Vasco Gato, só para enumerar alguns. “Sinto um orgulho extraordinário de cada vez que ganham um prémio ou me telefonam a dizer que vão ter um livro traduzido, sei lá, na Letónia”. O critério de Gesta para as suas escolhas obedece a algo muito simples: “São os livros que vou consumindo da minha mesa (enorme) de cabeceira.” Nas Quintas dá-se razão a Fernando Pessoa e descobre-se que, de facto, o poeta é um fingidor. Entre a imagem que perpassa dos livros e a realidade podem estar camadas de distância. “Aparecem pessoas extremamente dóceis e ternurentas, quando às vezes a sua escrita é pesada e difícil.” Mais uma surpresa por revelar.
Festa da Poesia
Os 11 anos de Quintas celebraram-se no passado dia 16, com mais de três horas de espetáculo. Na música Best Youth, Charles Sangnoir e At Freddy´s House. Nas leituras, os recitadores Isaque Ferreira, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Pedro Lamares e os coletivos poéticos O Copo e Peixe Graúdo. Ainda a dança da Vortice Dance Company e os desenhos de PAM. Como surpresa, um relato imaginário de João Ricardo Pateiro de um jogo entre Portugal e a Alemanha, com a conhecida voz da TSF a emocionar o público.
Os números das quintas
Sessões realizadas: 168
Espectadores: 25 000
Taxa de ocupação de salas: superior a 95%
Artistas convidados: mais de 1 000
Poemas lidos nas sessões: mais de 3 000, dos quais 95% de autores portugueses