Fez a curva e depois não se lembra de mais nada. Acordou no hospital. Façamos um rewind, ou como se diz agora em jargão, andemos para trás na box para ver o início deste filme.
No dia 17 de abril de 2020, a temperatura era amena e estava prestes a começar o VII BTT XCO – descodifique-se – a primeira prova pontuável da Taça de Portugal de Cross Country Olímpico. Explique-se melhor ainda, uma prova de ciclismo com bicicletas todo-o-terreno.
Em Melgaço, no distrito de Viana do Castelo, cumpriam-se todas as regras da Direção-Geral da Saúde para a primeira prova depois da chegada da pandemia. Eduardo Sá, 50 anos, subiu para a sua bicicleta e iniciou o percurso. Nesta competição, os atletas percorrem uma pista com diversos níveis e dificuldades entre pedras, pedregulhos e árvores.
A BTT de Eduardo estava a aguentar todos os embates e ele também. No último obstáculo, o que aqui quer dizer “uma descida íngreme e sinuosa, com pedras e árvores que terminava numa curva à direita”, explica, aconteceu o que ainda não sabe explicar. Pedalou, ultrapassou o obstáculo, fez a curva e… não se lembra de mais nada.
Eduardo sofreu uma queda grave. Fraturou a coluna. Diz que “teve sorte” por o médico da prova ser neurologista. Detetou imediatamente que o atleta tinha uma lesão grave nos membros inferiores. A fratura da vértebra T4 provoca paralisia das pernas e do tronco.
O timing da cirurgia é essencial
Foi helitransportado para a Unidade Vertebromedular (UVM) do Centro Hospitalar Universitário do Porto (Hospital de Santo António). Da viagem lembra-se (vagamente) do enorme esforço da médica e do piloto para que ele não adormecesse. Fez teste à Covid-19, uma TAC, e bloco operatório com ele. Lá dentro, Ricardo Rodrigues Pinto, ortopedista, cirurgião da coluna e diretor da UMV estava já de bisturi na mão para iniciar a cirurgia. “Neste tipo de lesões vertebromedulares é essencial o timing da operação. Quanto mais precoce for, maior é o benefício para o doente”, nota o médico. A cirurgia tem como finalidade descomprimir a medula, estabilizar a coluna com placas e/ou parafusos e alinhá-la.
Se pensarmos que a medula é o que faz o cérebro comunicar com o resto do corpo, é daí que sai toda a informação que nos faz mexer as pernas, os braços, as mãos ou qualquer outra parte do organismo, sabemos o quão vital é esta estrutura. Quando há uma fratura vertebral, a medula fica comprimida nessa zona, comprometendo essa comunicação.
Eduardo saiu do bloco operatório com “placas e parafusos que fixaram a coluna das vértebras T3 à T6”, diz. Depois, bem, depois começou todo um processo de reabilitação que sofreu algumas contrariedades no início, mas que é hoje um caso de sucesso na recuperação.
As lesões mais graves acontecem, normalmente, em quedas, acidentes de viação e mergulhos
Bruno Santiago
Esteve internado um mês e meio, teve lesões nas “costelas e no externo” que “foram inicialmente mascaradas” pela sua boa condição física, infeções hospitalares e alguns contratempos resultantes da lesão da coluna. A seguir deu início à fisioterapia.
Reabilitar e passear no Douro
“Se o primeiro ponto crucial é a operação, o segundo é o pós-operatório, principalmente os primeiros sete dias e, depois, a reabilitação”, atesta o médico Ricardo Rodrigues Pinto. Eduardo Sá tem tido “uma recuperação extraordinária”, assevera. O seu empenho, desde o início, tem sido fundamental. Trata por tu a passadeira, a bicicleta estática e outros aparelhos que o ajudam a recuperar os movimentos. Se, no início, nem os dentes conseguia lavar sozinho, depois ganhou técnicas para o fazer. Começou a andar com andarilho, depois canadianas e a seguir com um bastão.
Agora, faz uma caminhada de 4 a 5 kms de manhã, junto ao Douro, e fisioterapia e massagens à tarde. A advocacia, a sua profissão, vai ter de esperar mais um tempinho. E a bicicleta? Essa ainda está parada. “Ainda não tenho o equilíbrio suficiente.” Quer voltar a pedalar com os três filhos e a mulher, mas prometeu-lhes que nunca mais se mete em corridas de BTT.
A queda do aindame
Era mais um fim de semana como outro qualquer. Naquele 20 de julho de 2019, a pandemia ainda nem sequer era uma miragem, quando Pedro Gonçalves se despediu da mulher com um “até logo” e foi trabalhar. Pintor da construção civil, percorreu as ruas de Bragança que separam a sua casa da obra onde iria usar os rolos e os pincéis. Não sabe como, mas caiu do andaime. “Talvez uns três ou quatro metros de altura”, recorda agora. Perdeu a consciência e o resultado foi uma fratura craniana e vertebromedular. A primeira estada no hospital de Bragança foi rápida, em poucas horas foi helitransportado para a Unidade Vertebromedular (UVM) do Centro Hospitalar Universitário do Porto, a mesma onde esteve Eduardo Sá. O cirurgião de coluna Ricardo Rodrigues Pinto estava à sua espera no bloco. “A lesão do Pedro foi mais grave, do ponto de vista mecânico, do que a do Eduardo. O Pedro teve um desalinhamento maior da coluna, mas, felizmente, também é um caso de sucesso”, diz o especialista. O timing da operação pós-acidente foi, novamente, fundamental. “Um estudo da revista Lancet [publicação científica] refere que, nos EUA e Canadá, 34% dos doentes são operados em 24 horas. No nosso centro essa percentagem é de 95%”, refere o diretor da UMV do Porto. O médico alerta que deviam ser “criados centros de referência para doentes com lesões vertebromedulares”. A diferença, que é gigante, está entre um acidentado que pode ficar incapacitado e dependente dos outros para sempre ou que pode reabilitar-se e continuar a sua vida, ser autónomo.

Deitado na cama, depois da operação, Pedro Gonçalves acordou sem saber bem o que lhe tinha acontecido. “Foi a enfermeira que me contou. Fiquei em choque.” Não sentia as pernas, “da cintura para baixo não sentia nada”. A partir dali, iniciou todo o processo de recuperação. Andou em bolandas pelos hospitais e centros de reabilitação de Bragança, Porto e Macedo de Cavaleiros. Se antes só conseguia mexer ligeiramente “um dedo do pé esquerdo”, a fisioterapia fê-lo recuperar o andar. Primeiro de canadianas, agora com dois bastões. Voltar à profissão? “A médica disse-me logo para esquecer isso.” Aliás, o “patrão” que o chamou para trabalhar naquele sábado “não tinha seguro para acidentes de trabalho”, o caso segue no tribunal.
Está inscrito num centro de formação profissional e tem esperança de que “apareça alguma coisa” que se adapte à sua nova condição. Tem 45 anos e uma vida pela frente. “Consigo estar de pé algum tempo, mas não muito.” Mas não é isso que o esmorece. Tem lutado para recuperar e está “contente” com o que conseguiu até agora. “Estes doentes podem não ganhar autonomia completa, mas tudo o que ganharem é bom”, nota Ricardo Rodrigues Pinto.
Pedro só deseja ter mais horas de fisioterapia por semana. Já teve três vezes, depois passou a duas e a seguir a uma. “É pouco. Preciso de mais horas.” A mulher, cabeleireira com negócio próprio, e os filhos de 18 e 25 anos, têm sido o seu amparo e motor para não vacilar.
Brincadeira com arma de fogo
“A cadeira é como se fossem as minhas calças. Não permito que ninguém lhe toque sem a minha autorização.” É desta forma decidida que Nuno Vitorino, 44 anos, exprime a sua condição de não coitadinho que está numa cadeira de rodas. Não o aceita. Repele. Tem uma imensa energia, capacidade de resiliência, bom humor, alegria e otimismo para dar e vender. E bem.

Foi em Camarate, quando Nuno tinha 18 anos, que tudo aconteceu. O tudo foi um acidente com uma arma de fogo que um amigo disparou sem querer: “Estávamos a ver a arma e ele não sabia que estava carregada.” O tiro acertou-lhe no pescoço. As vértebras C6 e C7 foram atingidas e ficou tetraplégico – paralisia das pernas, do tronco e parte dos pulsos e das mãos.
Não baixou os braços e foi à luta. “Sempre quis ser parte ativa na minha recuperação.” Como os braços mexiam, foi aí que se focou. “Consegui otimizar a força nos braços.” Nunca quis ter uma cadeira de rodas elétrica por isso mesmo. A força que ganhou nos braços foi a mesma que transpôs para a sua vida. É, desde 1998, atleta de alta competição. O que começou por fazer parte da recuperação, nadar, acabou por se tornar uma paixão. Fez parte da Seleção Nacional de natação adaptada, participou nos Jogos Paralímpicos de Atenas, em 2004, e, quando se fartou da natação, virou-se para o surf. Fundou a Associação Nacional de Surf Adaptado. É “amor”, diz. “Ninguém paga um cêntimo por vir fazer surf connosco.” É o atual campeão da Europa de surf adaptado, prova que se disputou em Viana do Castelo, em 2019 (a pandemia impediu a prova de 2020).
Capacidade de resiliência
“O Nuno teve uma lesão completa com perda de função motora nos membros inferiores. São as lesões mais graves e acontecem, normalmente, em quedas, acidentes de viação e mergulhos, as armas são menos frequentes”, explica Bruno Santiago, neurocirugião do Hospital da Luz que operou Nuno, no mês passado, a uma hérnia cervical. “Teve uma adaptação extraordinária ao traumatismo que sofreu aos 18 anos. Tem muita energia. É uma pessoa única. É um exemplo.”
Três números sobre os efeitos dos traumas na coluna
78,8% dos traumas na medula acontecem aos homens, de acordo com um estudo publicado na Nature que reflete os dados dos EUA
15 casos por milhão de habitantes é a incidência de lesões vertebro-medulares na Europa. Na América do Norte, são 39 por cada milhão
1 As dores nas costas e no pescoço são a principal causa de incapacidade, segundo o relatório da Carga Global da Doença e Fatores de Risco em Portugal (2017)
Talvez sejam predicados a mais para o feitio de Nuno, não que não goste de os ouvir, mas a sua capacidade de contornar problemas parece do outro mundo. Fala com naturalidade da sua “capacidade de resiliência”, da “força e alegria” com que “conseguimos mudar o mundo” e de “viver e ser feliz” sem que olhem para ele de soslaio. “A sociedade olha para uma pessoa com deficiência pela negativa. Devem olhar para a parte ativa. ‘O que este tipo nos dá?’”
E tem dado muito. Vive sozinho desde os 21 anos, adaptou a casa na Alta de Lisboa, licenciou-se em Relações Internacionais, trabalha na Câmara Municipal de Lisboa como técnico superior, na sua área de formação, e só quer deslizar no mar em cima da prancha. O próximo objetivo é ir ao mundial de surf adaptado – faz deitado de barriga para baixo na prancha, sendo que a “tábua” tem pegas para se segurar – em dezembro, na Califórnia, estando a preparar-se para isso.
6 formas de prenevir lesões
Cumprir o Código da Estrada como forma de minimizar as potenciais lesões. Usar cinto de segurança e cumprir os limites de velocidade.
A segurança no trabalho é fundamental. Postura correta, distanciamento do monitor em relação aos olhos, cadeira ergonómica com altura regulável, apoio para os punhos e o braço e antebraço num ângulo de cerca de 90º são essenciais para não desenvolver problemas na coluna.
Não fazer saltos para a água, seja em piscinas, no mar ou em riachos e lagoas, de alturas elevadas, especialmente quando não conhece a sua profundidade.
Ao mergulhar, faça-o com os braços em extensão e as mãos à frente, de forma a proteger a cabeça.
Evitar, tanto quanto possível, se não for conhecedor, atividades de risco como escalada.
Na cama, opte por um colchão mais rijo (os colchões moles permitem que o corpo ganhe posições mais côncavas devido ao peso) e escolha uma almofada que permita manter o pescoço alinhado.
Quanto mais precoce for a cirurgia, maior é o benefício para o doente
Ricardo Rodrigues Pinto