Enquanto a população mundial aguarda expectante pela criação de uma vacina que previna a infeção pelo SARS-CoV-2, o que pode ainda demorar largos meses, outras terapêuticas de disponibilidade imediata vão sendo testadas para combater e minimizar os efeitos da Covid-19. Usar o plasma de doentes já recuperados no tratamento dos que ainda estão infetados poderá ser o antídoto que os médicos precisam para acelerar o tratamento ou reduzir os efeitos da infeção.
Em Portugal a dádiva de sangue é anónima, benévola e voluntária. Por isso, os mais de 1 700 doentes recuperados no nosso País que quiserem participar no ensaio clínico, que terá início ainda em maio, têm de se inscrever no site do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) para fazer a doação de plasma, principal componente do sangue, composto de água (95%), sais minerais e proteínas (5%), mas que no caso dos doentes recuperados terá também anticorpos que ajudarão a combater o novo coronavírus. “Podem existir anticorpos protetores nesta doença”, explica o imunologista da Fundação Champalimaud Thiago Carvalho, em declarações à SIC, mas também alerta de que “a presença de anticorpos não é uma garantia da imunidade”.
Na “terapia de anticorpos passivos” a pessoa recebe anticorpos externos, em vez de os gerar, criando imunidade como faria após a vacinação.
No prazo de 30 dias, um grupo de trabalho com uma dezena de especialistas terá de desenvolver o Programa Nacional de Transfusão de Plasma Convalescente para o tratamento de pacientes com Covid-19. Vai ser necessário recrutar e selecionar dadores, bem como doentes recuperados, fazer a colheita de sangue (disponível em três centros do IPST e em sete hospitais), a análise, o processamento e a distribuição do plasma através dos serviços de imunoterapia das unidades de saúde.
Já em meados de março, quando por cá teve início o primeiro estado de emergência, investigadores de Nova Iorque tinham esperança de que o plasma rico em anticorpos pudesse manter as pessoas fora dos cuidados intensivos. O uso desta abordagem centenária (remonta à década de 1890), de infiltrar pacientes com o sangue carregado de anticorpos daqueles que sobreviveram a uma infeção, segue os pequenos estudos que têm sido feitos na China, por enquanto, apenas com resultados preliminares.
Os primeiros relatos sobre o uso de transfusões de plasma convalescente para tratar Covid-19 vieram de duas séries de casos, em vez de ensaios adequadamente controlados, mas com resultados encorajadores. Cinco pacientes no hospital Third People’s, em Shenzhen, na China, foram tratados com plasma convalescente. Destes, três receberam alta e os outros dois estavam estáveis a partir de 25 de março, apesar de apresentarem insuficiência respiratória antes da transfusão. Um segundo estudo acompanhou dez pacientes com doença grave, recrutados em três hospitais em Wuhan, na China. Três receberam alta e os outros sete estavam prontos também para voltar a casa. Estes relatórios chineses sugerem que a terapia também pode funcionar durante as fases posteriores da doença, quando a síndrome do desconforto respiratório agudo já está avançada. No estudo de Shenzhen, os pacientes receberam plasma convalescente entre 10 e 22 dias após a admissão e no estudo de Wuhan receberam 16,5 dias após o início dos sintomas. Durante o surto de SARS de 2002-2004, os pacientes que receberam plasma convalescente em duas semanas tiveram resultados significativamente melhores do que aqueles que o receberam após esse período de tempo.
Arturo Casadevall, presidente do departamento de microbiologia molecular e imunologia da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, luta para usar o sangue como tratamento da Covid-19 desde o final de janeiro, quando a doença se começou a disseminar do Oriente para Ocidente. Os cientistas referem-se a essa medida como “terapia de anticorpos passivos”, uma vez que a pessoa recebe anticorpos externos, em vez de os gerar, criando imunidade como faria após a vacinação.
“Esta opção rapidamente tornou-se a melhor opção sem realmente demonstrar que funcionaria”, diz Arturo Casadevall num artigo publicado na revista Nature. “A probabilidade de dano é muito baixa em relação à possibilidade de benefício”, acrescenta.
Esta terapêutica também teve algum sucesso durante surtos anteriores. Um dos maiores estudos do caso ocorreu durante a Gripe Espanhola, a pandemia do vírus influenza H1N1 de 1918. Mais de 1 700 pacientes receberam soro sanguíneo de sobreviventes, mas é difícil tirar conclusões de estudos que não foram projetados para atender aos padrões atuais. Durante o surto de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) em 2002-2003, um estudo feito com 80 pessoas em Hong Kong concluiu que as pessoas tratadas com soro sanguíneo duas semanas após a manifestação dos sintomas tinham maior probabilidade de receber alta hospitalar do que aquelas que não foram tratadas. E o sangue de sobreviventes foi testado, em pelo menos, dois surtos do vírus Ebola em África com algum sucesso. As transfusões ajudaram a maioria dos pacientes, num estudo de 1995, na República Democrática do Congo, no qual não foi controlado por placebo. Outra investigação mais recente, feita na Guiné em 2015 foi inconclusiva, não tendo examinado o plasma na procura de altos níveis de anticorpos. Casadevall sugere que a abordagem pode ter demonstrado uma eficácia mais alta caso os investigadores incluíssem apenas participantes que estavam num estágio inicial da doença mortal e, portanto, eram mais propensos a beneficiar do tratamento.
Ao publicar no editorial do Wall Street Journal de 27 de fevereiro, Arturo Casadevall chamou a atenção também da comunidade científica e cem investigadores de vários institutos organizaram-se em diferentes grupos. Os virologistas começaram a encontrar testes que pudessem avaliar se o sangue de uma pessoa contém anticorpos contra o coronavírus. Os especialistas em ensaios clínicos pensaram como identificar e inscrever candidatos ao tratamento. Os estatísticos criaram repositórios de dados. E, para obter aprovação regulamentar, o grupo partilhou os documentos necessários para os conselhos institucionais de revisão ética e a Food and Drug Administration (FDA), a agência americana responsável pela regulação dos medicamentos e da alimentação. Um esforço conjunto que valeu a pena, pois a FDA classifica o plasma convalescente como um “novo medicamento em investigação” contra o coronavírus, permitindo que os cientistas enviem propostas para testá-lo em ensaios clínicos e que os médicos o utilizem para tratar pacientes com Covid-19 em risco de vida.