
Luis Barra
Ao longo das mais de duas horas de conversa, Ana Paula Alves, 45 anos, vai repetindo a frase “eu não sou preguiçosa”. Soa a desabafo e também a justificação. Como se fosse preciso reafirmar para que acreditássemos.
Basta ouvi-la falar sobre o trabalho, como anotadora e produtora de grandes eventos televisivos na RTP, para perceber que a sua atividade profissional é um dos seus maiores prazeres. Vê-se nos olhos rasgados, de um azul intenso, que ganham luz, a contrastar com o ar sombrio e pesado que acompanha o relato da sua relação, de longa data, com a fibromialgia – um conjunto de sintomas e sinais clínicos que definem a síndrome.
O primeiro grande episódio aconteceu no pico da adolescência, aos 17 anos, quando viajava com o rancho folclórico, de Itália para a Grécia, e se sentiu, de um momento para o outro, paralisada pela dor. Não havia paracetamol nem ibuprofeno na bagagem que a aliviasse do “insuportável”. “Deitava-me com dores e acordava com dores.” Já em casa, no Porto, fez um raio X ao corpo todo e nada. Tudo perfeito! Esta rotina de radiografia, TAC, ressonância, análises, tem vindo a repetir-se ao longo da vida. “Tenho uma bela coleção de fotos do interior do meu corpo!”, brinca. Invariavelmente, os exames médicos apontavam para uma saúde de ferro. “É da tua cabecinha”, justificou o seu médico de família. A primeira referência à palavra fibromialgia ouviu-a da boca de Maria Elisa, a jornalista portuguesa que sofre da doença e foi uma das fundadoras da Associação Nacional Contra a Fibromialgia e Síndrome da Fadiga Crónica – Myos. “Tenho fibromialgia e quero explicar às pessoas o que é”, recorda-se. Mesmo assim, só depois de um amigo médico a ter visto prostrada em casa, sem força nem energia para se mexer, é que a dor permanente, a fadiga, a insónia, os distúrbios intestinais, ganharam nome. “Ele tocou-me nos pontos de dor típicos e eu reagi em todos.” Com isso, o médico amigo tirou as dúvidas. Quando finalmente recebeu este diagnóstico, os membros da família, um a um, foram-lhe pedindo desculpa. “Afinal, a preguiçosa tinha era uma doença”, recorda.
O dia a dia de uma pessoa com fibromialgia é feito de dor, muita dor, noites mal dormidas, cansaço permanente, distúrbios nos intestinos e no sistema urinário. Normalmente, atinge mulheres com profissões exigentes e dadas ao perfeccionismo. O médico Paulo Clemente Coelho, especialista em reumatologia, descreve o problema da seguinte forma: “Vários estudos demonstram que as doentes com fibromialgia têm um limiar baixo da perceção da dor e parece que também são portadoras de mecanismos a nível do sistema nervoso que amplificam e generalizam a sua consciência da dor.” Uma espécie de hipersensibilidade que acontece a nível físico e emocional. Ao longo dos anos, Ana Paula Alves foi-se apercebendo de que por detrás de cada crise mais grave estava um contacto pessoal desagradável. “Sempre que sou ofendida, vou direta para o hospital”, conta.
“Muitas doentes apresentam um estado de hiperalerta em relação aos sintomas e sinais que as envolvem. É como se o seu corpo e mente estivessem em permanente vigília contra perigos e ameaças desconhecidas, mas interiormente temidas. São também doentes com uma tendência frequente para o perfeccionismo e uma visão da vida em que as pequenas coisas assumem proporções de dimensão exagerada em relação ao seu peso e efeito real”, complementa o médico, com experiência nestes pacientes que correm ceca e meca até encontrarem um diagnóstico e um profissional que esteja preparado, e disposto, a tratá-los.
A síndrome nem é assim tão rara. Tem uma prevalência de um a sete por cento na população em geral, mas o diagnóstico acaba por ser feito por exclusão de partes – normalmente, depois de anos e anos de queixas, de incontáveis idas à urgência hospitalar e de exames médicos feitos dos pés à cabeça.
Apesar de estar rodeado de profissionais de saúde, Ricardo Fonseca, 36 anos, enfermeiro e membro da direção da Myos, também demorou algum tempo a saber por que razão sentia dor a toda a hora e um cansaço descomunal que o obrigou a deixar de sair à noite para dançar e a gerir muito bem as forças para conseguir manter o trabalho, numa unidade pediátrica. “A fibromialgia é, frequentemente, banalizada e até menosprezada por uma parte da comunidade médica, a qual chega a colocar em causa a existência desta síndrome incapacitante”, sublinha Paulo Clemente Coelho.
Quando, finalmente, um reumatologista deu nome ao que tinha, Ricardo Fonseca sentiu-se aliviado e recuperou alguma qualidade de vida. Até lá chegar, em 2014, foi visto numa meia dúzia de especialidades médicas. Hoje, além da medicação, tem acompanhamento psicológico que considera “fundamental para se aprender a lidar com a dor e com a realidade de uma doença crónica”. Cumpre um horário rigoroso de descanso e, por recomendação médica, deixou de trabalhar por turnos.
À frente da Myos, esclarece dúvidas e tenta combater o estigma todos os dias. “Os pacientes, sobretudo os homens, têm muita dificuldade em falar, em assumir que têm fibromialgia.” Até mesmo aos colegas enfermeiros teve de explicar de que doença padece e as limitações que esta implica.
“É muito comum as pessoas acharem que somos preguiçosos.” Onde é que já ouvimos isso?

Os rostos da fibromialgia
Em Portugal, a doença tem um rosto, a jornalista Maria Elisa Domingues. Em 2003, Maria Elisa fundou a Associação Nacional Contra a Fibromialgia e Síndrome da Fadiga Crónica – Myos, e falou para quem a quis ouvir desta sídrome que lhe deixava o corpo dorido e em permanente estado de exaustão. Quem a vê no palco, a dar couro e cabelo, quase não acredita, mas a vocalista dos The Gift, Sónia Tavares, revelou sofrer de fibromialgia, que se tornou ainda mais difícil de controlar depois da gravidez e de ter sido mãe. Outra fera dos palcos que também sofre de crises de dor e fadiga é a cantora e compositora norte-americana Lady Gaga.
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