Dezenas de individualidades exigem uma revolução alimentar na União Europeia em nome do ambiente e do clima. Em carta aberta, publicada esta quarta-feira, garantem que a agricultura atual “é a maior causa individual de perda de biodiversidade e emite até um terço de todos os gases de efeito de estufa” e que “os maiores danos são provocados pela pecuária”. Por isso, sublinham, há que investir em alternativas, para substituir a produção de carne.
Essas alternativas propostas pelo grupo (que inclui três prémios Nobel, uma ex-vice-presidente da Comissão Europeia e três ex-comissários) passam por três pilares: substitutos de carne à base de plantas, fermentação de precisão e carne cultivada.
“A produção sustentável de proteína inclui três áreas cruciais de inovação: fermentação de precisão (uma forma avançada de fermentação, na qual microflora é utilizada para produzir as proteínas e gorduras específicas encontradas em produtos animais), carne cultivada (um método no qual células animais são criadas em larga escala em biorreactores para produzir tecidos animais verdadeiros) e alimentos à base de plantas (que inclui tudo, desde favas e leguminosas integrais a leites de plantas e hambúrgueres, salsichas e bifes à base de plantas).”
Os signatários destacam a fermentação de precisão como a mais promissora, que já consegue “produzir proteínas biologicamente idênticas àquelas que encontramos em carne e lacticínios tradicionais”, lê-se na carta, endereçada à Presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, ao vice-presidente-executivo, Frans Timmermans, aos comissários europeus Virginijus Sinkevičius, Janusz Wojciechowski, Paolo Gentiloni e a vários primeiros-ministros e ministros da Europa (em Portugal, o destinatário é António Costa e Silva, ministro da Economia).
“Empresas de fermentação de precisão aqui na Europa têm agora a capacidade técnica de produzir queijo sem produtos animais que derrete, cheira e sabe exatamente como o queijo que comemos hoje. Entretanto, além-mar, gelado, claras de ovo, hambúrgueres ‘sangrentos’ e outros produtos já estão a chegar ao mercado.”
Europeus “presos ao passado”
Os autores da missiva lamentam que a UE esteja a ficar para trás na inovação alimentar e pedem um “investimento imediato” de €25 mil milhões até 2030 (5% do alocado para o Green Deal) “para acelerar o desenvolvimento e comercialização de uma indústria europeia de proteínas sutentáveis”.
Enquanto países como EUA (onde já se vende leite de fermentação de precisão), Singapura (que disponibiliza carne cultivada), Canadá, Israel, Japão e China lideram o que chamam de “revolução alimentar”, os europeus parecem “presos ao passado”, “com a Itália a avançar para banir a carne cultivada e grandes estados-membros a não alimentarem o setor com financiamento público”.
Além dos benefícios ambientais, os signatários realçam as vantagens económicas, estimando que esta área alimentar valerá, até 2050, “1,1 biliões [milhões de milhões] de dólares em valor acrescentado bruto” e criará “9,8 milhões de empregos verdes a nível mundial”.
A carta aberta, coordenada pela ONG RePlanet, é assinada por 52 pessoas. Entre elas, encontram-se Sheldon Glashow e Roger Penrose (ambos Nobel da Física), Richard Roberts (Nobel da Medicina), Connie Hedegaard (ex-comissária europeia para o Clima), Christiana Figueres (que liderou os trabalhos que conduziram ao Acordo de Paris), George Monbiot (colunista e autor de livros de ambiente) e o músico Brian Eno.
Esta iniciativa corre em paralelo com a petição “Carne e laticínios sem matar animais. O futuro da alimentação está aqui, mas apenas se agirmos AGORA”, que esta quarta-feira, 20, já contava com 59 mil assinaturas.
Leia aqui a versão portuguesa da carta:
Cara Presidente da Comissão von der Leyen e Sr. Ministro António Costa e Silva
CC: Vice Presidente Executivo Frans Timmermans, Comissários Virginijus Sinkevičius, Janusz Wojciechowski, Paolo Gentiloni
Apelamos a que façam um investimento “moonshot” de €25 mil milhões, entre agora e 2030, para estimular uma rápida transição proteica e tornar a Europa um líder mundial na tecnologia crucial de proteínas sutentáveis.
Estamos à beira de uma revolução tecnológica, uma revolução alimentar sem precedentes desde a alvorada da agricultura, há milhares de anos. Esta revolução, liderada pelo setor em rápida evolução da produção de proteína não animal, deixa a Europa com uma escolha: investir agora e colher os benefícios ou vacilar e atrasar-se, enquanto o resto do mundo assume a liderança.
Hoje em dia, a agricultura é a maior causa individual de perda de biodiversidade e emite até um terço de todos os gases com efeito de estufa – mais do que todos os carros, aviões e navios juntos. Os maiores danos são provocados pela pecuária, que, por si só, cobre 26% da superfície terrestre, mais do que todas as florestas do mundo juntas. Entretanto, a guerra, choques climáticos e vulnerabilidades nas cadeias de abastecimento estão a provocar escassez alimentar que colocam a nossa segurança alimentar em perigo.
As crises provocadas pelas nossas dietas parecem inultrapassáveis. Mas serão mesmo? Assim como as fontes de energia limpa estão a chegar rapidamente para substituir os combustíveis fóssies, a produção sustentável de proteína demonstra potencial para reduzir as formas mais danosas de pecuária, a uma escala e velocidade previamente inimagináveis.
A produção sustentável de proteína inclui três áreas cruciais de inovação: fermentação de precisão (uma forma avançada de fermentação, na qual microflora é utilizada para produzir as proteínas e gorduras específicas encontradas em produtos animais), carne cultivada (um método no qual células animais são criadas em larga escala em biorreactores para produzir tecidos animais verdadeiros) e alimentos à base de plantas (que inclui tudo desde favas e leguminosas integrais a leites de plantas e hambúrgueres, salsichas e bifes à base de plantas).
De todas, a fermentação de precisão mostra mais promessas, mas é a que tem recebido menos atenção. Neste campo, os inovadores alimentares conseguiram agora aperfeiçoar o antigo processo de fermentação para atingir algo notório: produzir proteínas biologicamente idênticas às que encontramos em carne e laticínios tradicionais. Através de uma “parceria” com o mundo microscópico, empresas de fermentação de precisão aqui na Europa têm agora a capacidade técnica de produzir queijo sem produtos animais que derrete, cheira e sabe exatamente como o queijo que comemos hoje. Entretanto, além-mar, gelado, claras de ovo, hambúrgueres “sangrentos” e outros produtos já estão a chegar ao mercado. O mais importante é que a fermentação de precisão já tem provas dadas à escala global, produzindo 99% da insulina, mais de 80% do coalho e a vasta maioria do ácido cítrico do mundo.
Os benefícios ambientais e socioeconómicos da transição proteica são enormes. Transitar para proteínas sutentáveis poderia reduzir os impactos climáticos da carne em até 92%, e os investimentos no setor oferecem o maior potencial de descarbonização de qualquer indústria, por euro de capital investido – ainda maior do que investimentos diretos em energia limpa. Ecologicamente, libertando vastas áreas de terra da pecuária, a transição irá permitir uma restauração da natureza a uma escala sem precedentes, que pode ajudar a recuperar habitats vitais e capturar ainda mais carbono.
Economicamente, um setor de proteína completamente desenvolvido pode criar 1,1 biliões de dólares em valor acrescentado bruto e criar 9,8 milhões de empregos verdes a nível mundial até 2050. É importante salientar que estes empregos verdes também incluirão oportunidades para agricultores, não apenas na produção de ingredientes à base de plantas e rações, mas também em Pagamentos de Serviços de Ecossistemas por carbono sequestrado em terras devolvidas à Natureza.
Porém, de todos estes benefícios, o maior de todos é a resiliência sem paralelo que as proteínas sustentáveis apresentam aos choques e instabilidades das cadeias de abastecimento frágeis do nosso sistema alimentar atual. Será certamente por esta razão apenas que o resto do mundo está a avançar rapidamente. Nações pioneiras como Singapura, Canadá, EUA, Israel, Japão e China estão agora a liderar o mundo no apoio à investigação, desenvolvimento e comercializacão de proteínas sustentáveis, enquanto melhoram urgentemente os seus quadros regulatórios, fiscal e de rotulagem para as ajudar a entrar no mercado. Nos EUA, gelados e leite de fermentação de precisão estão agora disponíveis para os consumidores, enquanto que, em Singapura, a carne cultivada já está no mercado.
Mas aqui, na Europa, parecemos presos ao passado. Com a Itália a avançar para banir a carne cultivada e grandes estados-membros a não alimentar o setor com financiamento público, estamos uma vez mais a ficar para trás. Os europeus olharam com desalento enquanto isto acontecia com a internet e os serviços de informação, IA e uma multitude de outras indústrias de alta tecnologia, mas não podemos ficar sentados a olhar para o mesmo acontecer com a nossa comida. A revolução proteica acontecerá com ou sem a Europa. A única questão agora é se ajudaremos orgulhosamente a orientar esta transformação, ou se nos manteremos como observadores passivos. Com outros já a liderar a corrida, este é agora um assunto urgente de segurança alimentar fundamental para o Continente.
É por isso que nós, os abaixo-assinados, estamos a apelar-vos a que se comprometam com um investimento imediato de €25 mil milhões até 2030 para acelerar o desenvolvimento e comercialização de uma indústria europeia de proteínas sutentáveis. Este valor, embora ambicioso, representa apenas 5% dos €500 mil milhões adjudicados sob o investimento “Green Deal” a ser gasto em indústrias verdes até a mesma data, e nem se compara aos €420 mil milhões de fundos públicos que se prevê serem gastos na política agrícola comum até ao final da década. Além do mais, este investimento reflete o facto de que as proteínas sutentáveis têm de ser levadas tão a sério como outras tecnologias verdes vitais, tais como eólica, solar e hidrogénio – setores que também estão a beneficiar dos €210 mil milhões do plano REPowerEU. Com tais investimentos liderados pelo setor público, podemos também garantir que os benefícios de uma transição proteica sustentável serão amplamente partilhados de forma “open-source” e não serão inteiramente capturados por corporações do setor privado.
Acreditamos que esta medida, juntamente com refinamentos muito necessários a nível regulatório, fiscal e de rotulagem, tornará imparável a revolução alimentar e fará com que dietas nutritivas e acessíveis cheguem a todos, revelando ao mesmo tempo benefícios ecológicos, climáticos e económicos profundos. Está na hora de redescobrir o nosso espírito europeu de inovação e empreendedorismo. Está na hora de a Europa liderar a revolução alimentar.
Cordialmente,
Os abaixo-assinados.