Há literatura que parece destinada aos juristas e é esse o caso do Diário da República. Aliás, na maioria das vezes, sejamos ou não juristas, a nossa atenção foca-se imediatamente nos artigos do diploma que nos interessam e não propriamente nos preâmbulos, muitas vezes encarados como desnecessários, extensos e pouco relevantes em relação aos artigos e alíneas que surgem no texto.
Nos últimos tempos, tenho-me dedicado a ler na legislação nacional e na legislação europeia a introdução dos diplomas, onde são apresentados um historial, uma integração e uma fundamentação, conteúdos estes que percebi serem, em muitos casos, significativos, esclarecedores e interessantes.
Depois de vermos a Reserva Ecológica Nacional (REN) a ser trucidada politicamente, durante anos, pela maioria dos autarcas, fossem de que partido fossem, temos agora um governo neoliberal que está a preparar uma lei de solos onde o ordenamento ganha uma nova dimensão com o desaparecimento provável do conceito de urbanizável e não urbanizável, para ser possível construirmos quase onde quisermos, salvo algumas exceções.
O argumento principal é que a legislação setorial, nomeadamente na área dos recursos hídricos, já contempla, de melhor forma, o grau de proteção dado pela REN. É exatamente esse aspeto que cai por terra, quando a última revisão da REN se dá em 2008, através de um Decreto-Lei que explica e justifica a relevância deste instrumento, quando era Secretário de Estado o Prof. João Ferrão, um dos maiores conhecedores das políticas de ordenamento do território no país, e depois de já ter sido definida e publicada legislação como a Lei da Água, de 2005.
Desde a criação, em 1983, deste instrumento pioneiro à escala internacional pelo Arq. Gonçalo Ribeiro Teles, o país não teve impactes mais gravosos em falésias, leitos de cheia, e outras zonas sensíveis, para além, e principalmente, de uma construção ainda mais desordenada e excessiva que agora tentamos vender aos estrangeiros, precisamente por causa desse bode expiatório chamado REN, que impedia para muitos o desenvolvimento do país! Mas pelos vistos ainda não nos arrependemos…
Em 2008, reconhecia-se que a REN “tem contribuído para proteger os recursos naturais, especialmente água e solo, para salvaguardar processos indispensáveis a uma boa gestão do território e para favorecer a conservação da natureza e da biodiversidade, componentes essenciais do suporte biofísico do nosso país”, mas que era necessário resolver alguns dos obstáculos que se considerava existirem, aperfeiçoando a sua implementação. Entre outros aspetos estavam em causa:
“i) o reforço da importância estratégica da Reserva Ecológica Nacional, tendo presente a sua função de proteção dos recursos considerados essenciais para a manutenção e preservação de uma estrutura biofísica indispensável ao uso sustentável do território;
ii) a manutenção da natureza jurídica da REN enquanto restrição de utilidade pública fundamentada em critérios claros, objetivos e harmonizados na sua aplicação a nível nacional;
iii) a articulação explícita com outros instrumentos de política de ambiente e de ordenamento do território;
iv) a simplificação, racionalização e transparência de procedimentos de delimitação e gestão;
v) a identificação de usos e ações compatíveis com cada uma das categorias de áreas integradas na REN, ultrapassando uma visão estritamente proibicionista sem fundamento técnico ou científico.”
Mais ainda, foi criado um regime económico-financeiro que discriminasse positivamente as áreas integradas na REN e permitisse uma perequação compensatória mais justa e equitativa.
Há cinco anos, o diploma chave da Reserva Ecológica Nacional foi alvo de uma discussão pública envolvendo parceiros de diversa natureza, nomeadamente na área do urbanismo, ordenamento do território, e as organizações não governamentais de ambiente. Nos dias de hoje, a morte da REN já foi anunciada e a sua ressurreição é uma esperança cada vez mais remota.