“Numa gruta próxima de um castelo perdido nos penhascos da Transilvânia, está pendurado no teto o terrível morcego-de-ferradura-mourisco, que espera pacientemente o cair da noite para satisfazer o seu voraz apetite. Quando os últimos raios de sol finalmente desaparecem, o morcego abandona a sua colónia e vagueia pela noite deixando um rasto de morte feito com os despojos dos insetos que têm a infelicidade de se cruzar no seu caminho.”
Este podia ser o primeiro parágrafo de um romance realista sobre morcegos da Transilvânia, com o morcego-de-ferradura-mourisco (Rhinolophus mehelyi) como personagem principal. Sim, eu sei que não é um começo particularmente assustador, mas a verdade é que as três espécies de morcegos que se alimentam de sangue e inspiraram Bram Stoker em “Drácula” só existem na América Central e do Sul. As restantes 1200 espécies de morcegos conhecidas também gozam de uma certa má fama, mas não partilham este gosto por sangue com os morcegos vampiros. Por isso, para situar esta história na Europa com o mínimo de rigor, temos de ter mamíferos alados a comer sobretudo insetos, aranhas e centopeias, havendo no entanto espécies de morcegos de maiores dimensões que ocasionalmente capturam um pequeno vertebrado como uma ave. De qualquer forma, os agricultores europeus bem podem agradecer que os morcegos cheguem a consumir até 100% do seu peso em insetos por noite durante o verão, caso contrário, as suas culturas estariam bastante mais sujeitas a pragas (e eles gastariam muito mais dinheiro em pomadas para picadas de insetos).
Voltando ao nosso protagonista, o início do seu nome (“morcego-de-ferradura”) é comum a outras espécies deste género e explica-se por terem uma zona nasal mais grossa em forma de ferradura que é usada durante a ecolocalização. Recorrendo a esta tecnologia sonar bastante sofisticada, conseguem movimentar-se e capturar as suas presas no escuro, o que tem motivado alguns estudos de mecanismos de orientação para invisuais com base neste processo. Esta espécie aterroriza insetos na Roménia e em diversos países do Mediterrâneo, mas tem uma distribuição cada vez mais fragmentada. Pelo menos neste ponto do declínio desta e outras espécies de morcego, a história de Drácula parece assemelhar-se mais com a realidade.
Em Portugal, existem 27 espécies de morcegos que usam abrigos como grutas, minas, árvores, falésias ou construções humanas. O morcego-de-ferradura-mourisco ocorre no centro e sul do país, preferindo áreas de vegetação semi-aberta com matagal, bosque de sobreiros e/ou azinheiras e zonas próximas de rios, ribeiros ou lagoas. Ao contrário de outras espécies de morcegos que podem ter vários tipos de abrigos, as menos de dez colónias de morcego-de-ferradura-mourisco que se conhecem no nosso país situam-se quase exclusivamente em grutas e minas. Assim, a destruição e perturbação destes abrigos é uma das principais ameaças a esta espécie, tanto a nível nacional e internacional. E não adianta pedir ao Batman que deixe de usar estes espaços subterrâneos, uma vez que sendo uma personagem fictícia não lhe podemos imputar responsabilidade pela regressão dos seus companheiros.
É inegável que os morcegos fazem parte do nosso imaginário. E apesar das histórias, mitos e superstições raramente lhes terem sido favoráveis no passado, era bom que os morcegos continuassem a existir não só no mundo da fantasia como também no mundo real.
Referências bibliográficas:
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