Nos livros de Jane Austen, as suas personagens principais lutam sempre pela felicidade. Nunca se casam com o primeiro que lhes promete uma vida desafogada e até ao fim de cada um dos seus livros, vamos sofrendo com elas o penoso caminho da procura da felicidade. Felizmente somos ambas (leitoras e personagens) compensadas por não termos confundido uma satisfação temporária, imediata e não refletida com a ideia de felicidade. Acabei agora de ler Emma, centrada numa personagem que cresce e amadurece ao longo do romance e que lentamente se vai apercebendo de que a felicidade é muito mais do que a sua conceção inicial limitada e reduzida a conveniências sociais e materiais. Depois de muitos encontros e desencontros a história acaba com três daqueles casamentos “e foram felizes para sempre”, que nos deixam sempre com um sorriso e também nós felizes.
Se Jane Austen fosse portuguesa poderia usar a nossa riqueza de linguagem que permite diferenciar o estar feliz do ser feliz*. O estar feliz é transitório, hedonista, fácil e contextual. O ser feliz, implica uma reflexão sobre a vida, implica fazer um balanço das falhas e sucessos, das alegrias e das desgraças, do que fizémos e não fizémos, do que alcançámos e não alcançámos. São dois estados importantes e ambos contribuem para a riqueza da condição humana, mas não devem ser confundidos nem a nível pessoal, nem a nível político.
A New Economics Foundation publicou um relatório sobre Happy Planet Index** e o Reino Unido*** estuda a possibilidade de se medir a felicidade como um indicador. Quando a discussão tem implicações políticas é ainda mais importante saber do que se está a falar quando se fala de felicidade. O conceito Aristotélico de felicidade (eudaimonia) normalmente traduzido para “vida boa”, não é necessariamente equivalente a uma boa vida. Já o conceito utilitarista inspirado em Jeremy Bentham está mais ligado a uma aceção simples e quantitativa, cujas nuances assentam apenas na duração, intensidade, certeza ou incerteza e prazo (proximidade ou distante) dos prazeres. A “vida boa” está assente nas virtudes, em que mais importante do que o prazer, é a atividade deliberativa e harmoniosa que permita “fazer a coisa certa, na altura certa, pelos motivos certos e em harmonia interior”.
Os defensores da psicologia positiva identificam a felicidade com as emoções positivas promovendo-as como fundamentais. Os livros de autoajuda também assentam nessa ideia do “sinta-se bem”, “goste de si mesmo”, “faça atividades que lhe deem prazer”, “valorize as pequenas coisas”, “sorria mais”, etc. No entanto, por muito importantes que sejam as emoções positivas, não podemos esquecer que há emoções negativas que são valiosas e mesmo as mais apropriadas a determinadas situações. Uma visão reducionista da felicidade como uma emoção positiva escamoteia a essência Aristotélica da “vida boa” subvalorizando a importância da deliberação e da reflexão que podem dar sentido a muitos sentimentos não conotadas com a felicidade, como por exemplo o sofrimento. As sociedades ocidentais contemporâneas tendem a tirar o sentido à dor, fazendo com que depois tenhamos dores sem sentido. A omissão do elemento refletivo é um dos aspetos mais perturbantes de alguns conceitos contemporâneos de felicidade, especialmente se estes estiverem na base de recomendações normativas.
Há maus prazeres e bons sofrimentos, e portanto nem um nem outro são normativamente confiáveis. As políticas públicas têm que dar espaço e honrar compromissos que pela sua própria natureza possam envolver risco, sofrimento e dificuldades, por exemplo aqueles que envolvem lutar por uma maior justiça social****. A promoção de uma felicidade sem sofrimento e sem reflexão tem implicações negativas quer a nível pessoal, quer político. A nível pessoal porque por exemplo como se pode amar se não se sentir angústia e a nível político porque por exemplo como se pode lutar pela justiça se não se sentir raiva?
A publicidade, altamente influenciadora e definidora da nossa sociedade de consumo, tende a fazer com que confundamos o estar feliz com o ser feliz e somos muitas vezes levados a apostar demasiado no primeiro e de menos no segundo. Queremos “estar felizes”, agora mais do que nunca, talvez porque quase somos coagidos a tal, por estarmos constantemente rodeados por imagens e mensagens de uma felicidade apenas material. Mas precisamos de lutar pelo “ser feliz” através de uma reflexão pessoal, social e política sobre o verdadeiro valor das nossas emoções. Passaremos por fases difíceis e não estaremos sempre felizes, mas no fim sorriremos para nós próprios como fazemos com aqueles finais felizes de Jane Austen.
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* Devo esta observação a Eduardo Gianetti da Fonseca, num workshop na Gulbenkian sobre Felicidade em novembro 2010 organizado pelo programa Próximo Futuro.
** http://www.happyplanetindex.org/
*** http://www.publico.pt/Mundo/faznos-falta-medir-a-felicidade-interna-bruta_1467510?p=1
**** Este parágrafo, e outras ideias deste artigo foram tiradas de um artigo de 2008 de Martha Nussbaum, “Who is the happy warrior? Philosophy poses questions to psycology”