
A poucos dias do início da Cimeira do Clima, em Glasgow, a BBC revela os resultados de uma investigação da Unearthed (uma rede de jornalistas ligados à Greenpeace) que promete aquecer as negociações. Estes “Climate Papers” mostram como alguns países tentaram suprimir frases inteiras do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas).
O IPCC é um organismo científico que trabalha no âmbito das Nações Unidas; os seus relatórios, publicados desde 1988, são considerados a nata da nata da ciência climática e servem de base para as decisões de mitigação e adaptação ao aquecimento global. O Acordo de Paris, assinado em 2015, definiu como objetivo limitar o aumento da temperatura média global a 1,5 ºC.
Os rascunhos do IPCC passam sempre pelas mãos dos governos mundiais, que fazem comentários e sugestões aos textos, numa tentativa de se atingir um consenso no relatório final. A BBC diz que, dos contributos dos governos que já leu, de um total de 32 mil, “a grande maioria é positiva e melhora a qualidade do relatório”. Mas muitos põem em causa frases e conclusões fulcrais.
Entre os países que fazem lóbi contra a necessidade de reduzir rapidamente as emissões estão alguns óbvios – produtores de petróleo, gás ou carvão –, como a Arábia Saudita, a Austrália e o Japão. A Austrália, por exemplo, discorda da necessidade de se fecharem centrais a carvão, apesar de o fim da queima de carvão ser, de longe, o passo mais importante rumo à descarbonização.
Mas também a Suíça levanta questões sobre as ajudas financeiras climáticas aos países mais pobres (foi acordado em 2009 que seria criado um fundo, suportado sobretudo pelos países mais ricos, de 100 mil milhões de dólares anuais, a partir de 2020, mas o ano passado a verba ficou-se pelos 80 mil milhões). O Brasil e a Argentina não concordam, por seu lado, com a necessidade de reduzir o consumo de carne. O governo de Bolsonaro também tentou mudar uma afirmação de que recentes políticas brasileiras estão a levar ao aumento da desflorestação.
“Factos são factos”
Cientistas que contribuíram para o relatório garantem, no entanto, que estes contributos negativos de governos e organizações não alteraram as conclusões. “O relatório baseia-se em mais de 14 mil estudos publicados em revistas científicas”, diz à VISÃO Irina Gorodetskaya, investigadora na Universidade de Aveiro e uma das autoras da última avaliação do IPCC. “Factos são factos. A ciência não muda porque os políticos têm uma opinião diferente. O relatório limita-se a mostrar a melhor ciência disponível.”
A investigadora (a única dos que contribuíram para o relatório que trabalha em Portugal) diz que o processo de revisão leva em conta os contributos dos diferentes governos, e que todos são analisados pelos cientistas. Isso não significa, no entanto, que as alterações sugeridas sejam incluídas no texto final. “Todos estes comentários foram revistos, mas sempre do ponto de vista estritamente científico. Cada contributo é analisado à luz da literatura científica. Se for levantada uma questão pertinente, vamos rever os estudos sobre esse assunto.”
Alguns destes comentários dos governos vão mesmo contra os interesses a longo prazo do próprio país. Irina Gorodetskaya dá o caso da Austrália, que tem tentado bloquear os entraves ao carvão, por ser um dos maiores produtores mundiais de carvão. “É um facto que a Austrália é afetada pelas alterações climáticas, que estão a fazer aumentar o risco de incêndio.”
Entre 31 de outubro e 12 de novembro, quase todos os países do mundo vão reunir-se em Glasgow, na COP26 – a Conferência das Partes, no âmbito da ONU – para negociar medidas de mitigação e adaptação às alterações climáticas, de modo a tentarem cumprir o Acordo de Paris.
As “discordâncias” dos países
Austrália: Um membro do executivo rejeitou a conclusão de que o encerramento de centrais a carvão seja necessário. O governo pede ainda aos cientistas do IPCC que excluam uma referência ao papel desempenhado pelos lobistas dos combustíveis fósseis, que têm tentado atrasar a implementação de medidas climáticas na Austrália e nos Estados Unidos. Também é posta em causa a necessidade de os países mais pobres receberem apoios financeiros. Finalmente, apelida de “comentário subjetivo” a afirmação do IPCC de que “faltam compromissos públicos credíveis” no que respeita ao financiamento.
Arábia Saudita: Um conselheiro do Ministério do Petróleo exige que “frases como ‘a necessidade de ações urgentes e aceleradas de mitigação em todas as escalas …’ sejam eliminadas do relatório”. O governo saudita pede ainda que retirem a conclusão de que “o foco dos esforços de descarbonização no setor de sistemas de energia deve ser a rápida mudança para fontes de carbono zero e a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis”. A Argentina e a Noruega levantaram igualmente dúvidas sobre esta afirmação.
Noruega: Solicita aos cientistas do IPCC que avaliem melhor o potencial da tecnologia CCS – captura e sequestro de carbono – para a redução de emissões (o CCS é considerada ainda uma tecnologia pouco madura e muito cara).
Brasil e Argentina: Põem em causa as conclusões de que a redução do consumo de carne e a aposta em dietas com mais vegetais têm um impacto significativo no corte de emissões. Os dois países, que estão entre os maiores produtores de carne do mundo, pedem para serem apagadas ou alteradas as referências às “dietas baseadas em plantas”. O Brasil também considera “incorreta” a afirmação do IPCC de que alterações legislativas do governo estão por detrás do aumento da desflorestação da Amazónia.
Suíça: Os representantes do governo fazem vários comentários no sentido de alterar as secções do relatório sobre a necessidade de financiamento dos países mais pobres.
OPEP: A Organização dos Países Exportadores de Petróleo solicita ao IPCC que “elimine [a frase] ‘o lóbi que protege os negócios de extração [de combustíveis fósseis] impede a ação política'”.