
É a “nossa” cientista do Grupo de Trabalho I do relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), tornado público no mês passado e que António Guterres apelidou de “código vermelho para a Humanidade”. Investigadora no Centre for Environmental and Marine Studies (CESAM), da Universidade de Aveiro, Irina Gorodetskaya já esteve várias vezes em trabalho de campo na Antártida, a estudar o degelo e a precipitação. É aqui, no Continente Branco, que se encontram as maiores incógnitas – e onde as consequências das alterações climáticas poderão ser mais graves para todo o planeta, diz à VISÃO a cientista russa, que ajudou a redigir um dos capítulos do Sexto Relatório do IPCC.
Choveu no pico da calota polar da Gronelândia pela primeira vez na História registada. Quão significativo é este sinal?
É muito significativo. O aumento da ocorrência de chuva é uma das mudanças que estavam previstas para o Ártico, e para a Gronelândia em particular. Este evento mostra que não é “apenas” uma projeção – está já a acontecer. As pessoas podem dizer “Ok, foi só uma vez”, mas a frequência está a aumentar e podemos esperar mais fenómenos do mesmo tipo na Gronelândia. Além disso, apesar de ter sido um fenómeno curto, tem consequências a longo prazo, ao alterar as propriedades da neve. Vai ter fortes consequências para o degelo da superfície, que já está a ocorrer. É esta também uma das conclusões centrais do relatório do IPCC.
A Gronelândia está prestes a atingir um ponto de não retorno, para além do qual as calotas polares continuariam a derreter mesmo se o aquecimento fosse travado?
De facto, a perda de massa de gelo da Gronelândia pertence ao grupo de fenómenos que têm essas consequências a longo prazo, em termos de pontos de não retorno: mesmo em cenários de baixas emissões, as mudanças na Gronelândia vão continuar. Ao mesmo tempo, e isto foi igualmente uma das principais conclusões do relatório, não excluímos alterações rápidas, que têm baixa probabilidade mas grandes impactos. Neste caso, o IPCC refere-se ao manto de gelo, que pode desintegrar-se abruptamente. Isto quer dizer que as mudanças podem ser muito mais rápidas do que se previa nos cenários conservadores.
Devemos estar preocupados, tendo em conta o efeito do degelo dos mantos polares na subida do nível do mar?
Temos de estar muito preocupados. A subida do nível do mar, tendo em conta os contributos da expansão térmica e do derretimento dos mantos de gelo e dos glaciares, pode ir de mais de um metro a três metros até 2300. Mesmo no cenário mais conservador, partindo do princípio de que é cumprido o Acordo de Paris, limitando o aquecimento a 1,5 ºC, essa subida de meio metro teria já enormes consequências para todas as regiões costeiras, incluindo Portugal.
Esse degelo tem efeitos na Corrente do Golfo? Milhões de toneladas de água doce a cair no mar podem travá-la?
Sim, esse foi outro assunto discutido: a circulação termoalina meridional do Atlântico [AMOC, que integra a Corrente do Golfo]. Há uma preocupação de que, se houver alterações abruptas na massa de gelo da Gronelândia, teremos quantidades imensas de água doce a ser libertadas no mar e a “desligar” a AMOC. Esse cenário não está excluído. As projeções para o final do século são de que haja um enfraquecimento da Corrente do Golfo.
O que aconteceria na Europa?
Teríamos mudanças drásticas nos padrões climáticos. Seguramente, podemos esperar alterações no ciclo da água, generalizadas a todo o planeta: regiões secas ficariam mais secas e regiões húmidas ficariam mais húmidas.
Quais são as conclusões mais importantes do relatório do IPCC sobre o degelo?
Que há mudanças globais e rápidas. Algumas são lentas, como o degelo dos mantos de gelo. Mas outras não, como a área coberta de neve durante a primavera, no hemisfério norte, que se reduziu e continua a reduzir muito. E também o recuo dos glaciares e o problema do gelo marinho do Ártico, que tem tido um declínio acentuado, sobretudo nas últimas duas décadas. Todos estes fenómenos são muito provavelmente devido à influência humana. Em relatórios anteriores, esta responsabilidade não tinha sido diretamente atribuída, mas agora os níveis de confiança de que se devem à mão do Homem são muito altos. Quanto ao manto de gelo da Antártida, por outro lado, a evidência ainda é limitada. Precisamos de mais observações e de um melhor entendimento dos processos.
Cada novo relatório parece ser mais pessimista do que o anterior. O aquecimento global está a acelerar ou é uma questão de haver melhor Ciência?
Ambos. Desde o Primeiro Relatório do IPCC, em 1988, o aquecimento tem continuado. Hoje, estimamos que tenha aumentado 1,1 ºC desde o período pré-industrial. Neste relatório, é inequívoco que este aquecimento se deve à influência humana. Temos este nível de confiança, porque conhecemos melhor os processos e a componente das influências regionais, além de termos também melhores modelos climáticos.
As temperaturas têm subido mais depressa junto aos polos…
No Ártico, o aumento da temperatura média é, pelo menos, o dobro da média global. Está na casa dos 2 ºC. Em algumas regiões, esse aumento ultrapassa os 3 ºC. E o aquecimento do Ártico deve manter-se. Alguns modelos mais pessimistas preveem um aumento de mais de 10 ºC até 2100, o que é imenso. Uma das consequências é que, por volta de 2050, já não haverá gelo marinho no Ártico no final do verão. A Antártida, como um todo, ainda não mostra esta amplificação polar, mas tudo indica que deverá acontecer no futuro. Já o vemos na Península Antártica [no oeste], enquanto no leste temos sinais mistos, com algumas regiões a arrefecer, outras a aquecer e outras ainda sem tendência definida.
Porque é que a Antártida tem dado sinais mistos? Alguns céticos aproveitam-se disso para pôr em causa o aquecimento.
A Antártida é enorme, e um dos problemas é que temos poucas estações de observação. Muitas vezes, temos de tapar os buracos com modelos climáticos. Mas as projeções anteveem um aquecimento muito significativo. Podemos dizer com segurança que há um aquecimento significativo na Península Antártica. A questão é que, na Antártida, há uma grande variabilidade natural, e o sinal da influência humana está escondido por detrás dela. Mas há estudos que demonstram que, retirando essa variabilidade da equação, a influência antropogénica emerge. Esses estudos preveem ainda um aumento de temperatura tanto no lado ocidental como no oriental.
No geral, feitas as contas, a Antártida está a perder ou a ganhar gelo?
A perder gelo. Apesar do possível aumento de precipitação em várias regiões antárticas, as perdas de gelo são muito maiores do que os ganhos.
Os pontos de não retorno permanecem um mistério. Até que ponto nos devemos preocupar com coisas como o derretimento do permafrost [o solo permanentemente gelado, que contém mais carbono do que os humanos já emitiram desde a Revolução Industrial]?
Está já a acontecer na Sibéria e na América do Norte. É preocupante, porque o acréscimo de emissões de dióxido de carbono e de metano do permafrost pode continuar por muitas décadas e até séculos.
E a redução da albedo? Menos gelo significa menos luz solar a ser refletida, o que faz aumentar a temperatura da superfície…
A albedo vai decrescer, sim, mas não é considerado um ponto de não retorno, até porque, se as temperaturas estabilizarem, se conseguirmos manter o aumento de temperatura em 1,5 ºC, espera-se que o gelo marinho volte a crescer.
Isso é uma boa notícia do relatório.
Exato. Nem todas as mudanças são irreversíveis.
Mas há mais possíveis pontos de não retorno…
Sim. Um dos mais assustadores é a perda completa do manto de gelo da Antártida ocidental. Esse risco existe e, se acontecer, terá consequências por várias gerações.