Foi baleada no Iraque, em 2003, quando reportava a missão da GNR naquele país. Sobreviveu. Hoje, é com alguma mágoa que recorda essa situação e a forma como a mudou, para sempre. No livro Viagens Contadas, Maria João Ruela abre a porta da intimidade e partilha, num registo bem-humorado e vivo, o que os seus cadernos de apontamentos contam de Marrocos, da Patagónia, do Nepal, da Noruega.
Por que razão devo comprar o seu livro, o que o diferencia de outros livros de viagens? Eu fiz as viagens primeiro, sem saber que ia escrever um livro e, a posteriori, é que me desafiaram a escrever sobre elas. Tinha as notas, que fui tirando, uma coisa de defeito profissional, de ir registando histórias. É mais um livro de histórias das pessoas que fui encontrando, mais que das viagens propriamente ditas.
Porque aceitou o desafio de escrever? Já tinha pensado nisso? Já, mas o que gostaria mesmo de fazer – nunca farei, porque não sei – era uma coisa no registo policial. Adoro ler livros policiais. Até tinha feito uns exercícios em casa mas, de repente, a editora propôs-me fazer um livro de viagens. Pensei : “Um livro de viagens não é bem um romance e fica meio caminho entre o registo jornalístico e a literatura de viagens.” Foi o empurrão para fazer uma coisa diferente na minha vida. Nós vamos precisando de ter desafios.
O que a faz viajar é o desejo de “encontros inesperados com personagens míticas”? Diz isso, em relação à Patagónia. Depende do sítio. Na Patagónia sim, mas quando vou para Londres ou Paris não penso nisso. Viajo por muitas razões. Durante muitos anos viajei porque fazia alpinismo e gostava muito de estar nas montanhas, de as subir. Fui ao Nepal porque queria ir às montanhas mais altas do mundo: ver como eram, experimentar a altitude, caminhar. Estive nos Alpes e Pirenéus pelas mesmíssimas razões, colocavam-me desafios. Desde que fui ferida deixei de poder fazer isso com tanta intensidade e passei a encontrar outro tipo de destinos. Agora viajo para encontrar amigos -tenho a sorte de ter alguns espalhados no mundo.
O que é que as montanhas têm de especial? Não sei, eu sou uma mulher que nasceu nas planícies. Há uns 20 anos, tinha um grupo de amigos que gostava muito de montanhas e desafiou-me a ir com eles, primeiro aos Picos da Europa e, depois, nos Pirenéus. Lembro-me que chorei porque tinha medo. Sou super teimosa e as coisas que me intimidam, tenho de arranjar maneira de as enfrentar. Começou como um desafio para vencer esse medo e um desafio para colocar a mim própria Depois voltei lá – ao Monte Perdido, nos Pirenéus – e consegui subir. É uma questão de nos superarmos.
É viciante? É, é muito viciante. Permite ter umas férias de aventura, de exercício físico, eu gosto muito disso. Ao mesmo tempo é possível estar em sítios com pouca gente à volta, sem confusões.
Escreve que é nas situações limite que a vida surge na sua verdadeira dimensão. Já sabe qual é? Já esteve em algumas situações limite na sua vida. Já consegui enquadrar os meus limites, aquilo de que sou capaz e não sou e isso ensinou-me a conhecer-me melhor. Eu sei que nunca serei capaz de subir aos Annapurnas. Vi-os ao longe, no Nepal, mas aquilo não é para mim. Sei colocar-me limites e isso ensina-nos no dia-a-dia.
No Nepal, contratou um carregador contra a opinião do seu marido e disse-lhe: “Pago do meu bolso”. Na SIC chamam-lhe “generala”. É preciso ser durona para ir para locais tão inóspitos? Acho que é preciso ter algum espírito de sacrifício, porque nessas viagens sofremos fisicamente. No Nepal, por exemplo, acordar às oito da manhã, começar a caminhar, até às cinco da tarde, sob vários climas e suportar a altitude, é doloroso. Há muitas pessoas que não estão interessadas nisso. Durona desse ponto de vista sim. Durona comigo, também, para convencer o meu corpo que tem de continuar a caminhar e que não pode desistir.
Há um trabalho psicológico anterior? Não, há um trabalho de entusiasmo. Parto sempre cheia de vontade e a única preparação é… fazer a mochila. E eu sou super rápida a fazer malas.
A experiência no Iraque mudou a sua vida. Li numa entrevista que se diz mais dura, mais exigente hoje, sem problemas de dizer o que pensa. O que é que isso quer dizer? Não sei se isso traduz especificamente aquilo que acho… Mas naquela semana da minha vida, durante vários dias, me disseram que podia morrer ou não. Estar confrontada com essa situação faz-nos ver as coisas de uma maneira diferente, no meu caso, transformou-me numa pessoa mais fechada. Devia ter sido o contrário, devia estar mais agradecida… Talvez essa dureza seja no trato com as pessoas. Deixei de ser tão simpática, tão afável e deixei de ter problemas em…
Em ser má? … em ser má entre aspas, no sentido de adoçar o que acho. Mas estou, sobretudo, a falar de relações profissionais.
Ou seja, não tem uma mágoa, não se tornou mais amarga. Tornei-me mais amarga no sentido em que deixei de fazer uma série de coisas que adorava na minha vida. Por muito que encare de uma forma positiva -e sempre o tentei fazer -às vezes fico triste. Sou muito competitiva. Adorava correr e um dos prazeres que tinha era ir correr de manhã, à beira rio. Andavam lá os tipos do Corpo de Intervenção e um dos desafios que eu tinha era correr atrás deles, conseguir fazer o mesmo que eles. E já conseguia. Ainda hoje quando os encontro me dizem que se lembram de quando eu corria com eles. Deixei de poder fazer isso. Agora sou sempre a última, em tudo. Por muito positiva que eu seja, isso limita-me, mas eu continuo a ver-me como era antigamente.
“Carrego uma perna que não me deixa correr”. De que modo isso condiciona os destinos de viagem que hoje escolhe? Ao Monte Branco, que é a montanha mais alta dos Alpes, nunca poderei ir, porque não tenho forma física para o fazer. Se quisesse fazer o que fiz no Nepal… Não sei se conseguiria caminhar oito horas por dia e se ao fim de três dias não teria que parar, porque a minha perna ia “dar o berro”. São esse tipo de questões que tenho de colocar quando escolho um destino. Vou tentando equilibrar as coisas…
Mas surgem outros… Vamos fazer [a jornalista viaja sempre com o marido, editor de imagem, na SIC] uma viagem grande no Canadá e conhecer a zona da Nova Inglaterra, descer até aos EUA, talvez… É uma viagem que agora me entusiasma mais que há oito anos. Antes de isto me ter acontecido teria pensado no Parque Natural de Yellowstone.
A única vez no livro em que há uma referência urbana é quase sempre enquadrada, num programa com guias, excursões. As cidades não a atraem? Atraem, atraem-me imenso. Não escrevi sobre elas porque não são destinos assim tão… [especiais]. Há muito mais gente a conhecer as cidades, cada um tem a sua leitura e não há muito sobre que escrever. Mas gosto imenso. Adoro ir a Berlim, sinto-me lá mesmo bem! Em Viena, estive muitas vezes porque fui operada lá, adoro! São cidades a que a maior parte das pessoas até pode torcer o nariz, por ser tudo muito organizado… Mas são vibrantes, onde acontecem imensas coisas.
Há um lado seu que gosta dessa questão de ordem, organização e disciplina. Sim, sim. Viveria tranquilamente em qualquer um desses países, porque sou muito organizada, no trabalho, na minha vida particular. Não me custa nada cumprir regras e viver em sociedades mais organizadas que a nossa. Às vezes faz-me alguma impressão a falta de respeito pelos outros, que existe cá.
Alguma vez pensou imigrar, como a sua amiga Xana, que foi visitar à Noruega? Muitas vezes, muitas vezes…
Ainda é possível que faça mesmo isso? Não sei se haverá muitas oportunidades. Eu não estou mal, não me posso queixar da vida. Não é uma questão de ter de ir ganhar dinheiro lá para fora… Às vezes é uma insatisfação connosco, com o mundo que nos rodeia. Como não tenho filhos, tenho essa liberdade. De alguma maneira desabituei-me de ter muitas relações sociais. Eu trabalho sempre ao fim de semana, que é quando toda a gente se encontra, vai jantar…
Trabalha ao fim de semana, no Natal, parece um pouco bicho do mato… É. Às vezes até me sinto bem. Tenho um bocado esse lado e habituei-me. Ao fim de dez anos a folgar durante a semana, a andar desencontrada, já me faz impressão ficar em casa ao fim de semana. O que é se faz? À segunda e à terça-feira ir para qualquer lado é fácil, está tudo vazio. ,Ao sábado e ao domingo é um pesadelo de gente.
Qual é a sua próxima grande viagem? Há de ser o Canadá, pode ser também à Nova Zelândia ou Austrália, mas isso implica pôr muitos dias de férias seguidos. A perspetiva de gastar as férias todas de uma vez só também me inquieta.
Mas fez isso no Nepal, embora tenha sido um bocado a contrarrelógio. Sim, foi um bocado a correr, mas foram bastantes dias. Quando fomos à Patagónia, casei-me nessa altura, já vivia com o meu marido há 15 anos…
Foi em lua-de-mel? … foi uma lua-de-mel, que não era lua-de-mel. Nós pensamos: para termos mais dias de férias o que é que podemos fazer? Casar!
Então casou para ir para a Patagónia? Sim. Foi uma maneira de arranjar mais 11 dias e, com mais algumas folgas, ainda ficámos com férias nesse ano. Porque a chatice dos destinos no hemisfério sul é que vamos no nosso inverno e amargurar um verão inteiro cá a trabalhar é duro.