Antes de mais, há que dizer que existem milhões de pessoas em todo o mundo religioso animadas das mais nobres intenções, que se sacrificam, desgastam e dão a vida pelos mais fracos, pobres e desprotegidos. Portanto, o discurso que atribui todos os males deste mundo à religião é injusto, superficial e, frequentemente, cínico.
A verdade é que os não crentes exigem um comportamento acima de toda a suspeita aos crentes, e bem, mas assim como uma andorinha não faz a primavera, um mau líder religioso não define a religião. Afinal, Deus não se revê na maior parte das ações dos maus religiosos, e não tem culpa do que os homens fazem invocando o seu nome.
No que toca ao mundo ocidental, os grandes avanços humanitários, científicos, educacionais, culturais e sociais são atribuíveis quase em exclusivo à influência cristã. Apesar de tudo, o cristianismo é responsável por algumas das páginas mais negras da história europeia. Relembro apenas como exemplo as Cruzadas, a Inquisição e o Codex. Por isso, pode afirmar-se que a religião é uma espécie de energia nuclear. Pode ser usada para iluminar o mundo ou para o destruir. A diferença está no caráter e motivação de cada líder religioso.
Qualquer estudioso de Ciência das Religiões sabe que algo tão poderoso como a crença religiosa, a fé e a organização e expressão da mesma, se podem encaminhar em diferentes sentidos ou cair em perigosos equívocos. A História está aí para o comprovar. Não é por acaso que tanta gente está disposta a morrer pela sua fé, tanto recusando-se a renegá-la como em ações da sua proclamação à sociedade. Tertuliano dizia que “o sangue dos mártires é a semente da Igreja.” E citava um velho ditado pagão que testemunhava com admiração do amor entre os fiéis: “Vejam só como esses cristãos se amam uns aos outros!” Até aí os cristãos iluminavam o mundo.
Com o Édito de Milão (313 dC), após cerca de dois séculos e meio de perseguição por parte dos imperadores romanos, a fé cristã passou a ser tolerada, podendo realizar os seus serviços religiosos em público, mas em 311 dC Teodósio proclama-a religião oficial do império.
O problema do potencial destrutivo da fé começou pela mão de Constantino, quando o cristianismo recebeu os templos até aí dedicados aos deuses pagãos e copiou os paramentos, as alfaias religiosas, e a cultura litúrgica de pendor fortemente sacrificial. Os líderes cristãos receberam também inúmeras prebendas e desenvolveram uma estrutura hierárquica, tentando colmatar a vacatura de poder que a sede do império deixou em Roma ao mover-se para Bizâncio. Tinha nascido a igreja imperial, uma perfeita contradição nos seus termos.
Foi aí que nasceram as perversões que haveriam de vir a influenciar negativamente a história da fé cristã, em especial devido à atração pela influência ou exercício do poder, em vez da cultura de serviço que a Igreja sempre tinha tido até aí. Jesus Cristo tinha dito: “Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são estes dominados, e que os grandes exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal, E, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo. Bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos” (Mateus 20:25-28).
Mas também não se podem esquecer a vaidade e ostentação emergentes em vez da humildade e simplicidade que haviam caracterizado os séculos anteriores. E sobretudo do amor ao dinheiro em vez do despojamento. Para isto já há muito que o apóstolo Paulo tinha alertado Timóteo: “Porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores” (I Timóteo 6:10).
Em consequência destes desvios surgiram entretanto aberrações como a exploração e o abuso religioso em nome da fé, assim como a mistura entre religião e política, e mesmo algumas guerras que utilizaram a crença religiosa como pretexto para manter ou tomar o poder.
Voltaremos ao tema.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Irá a América implodir um dia?
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.