Recentemente temos estado a viver um episódio indigno na vida política do país entre protagonistas de topo. De um lado temos o chefe do governo e do outro o líder dum partido da oposição que dirige cinquenta deputados no parlamento. Perante versões absolutamente opostas sobre uma reunião privada (ou várias) entre ambos, cada um deles afirma que é o outro que está a mentir.
Esta divergência tão frontal de testemunhos é danosa para o país porque ficamos sem saber se Montenegro tentou mesmo ou não fazer passar o orçamento cedendo à extrema-direita, acenando-lhe até com uma futura entrada no governo, ou se tudo isto são efabulações de André Ventura, conhecido pelas suas persistentes mudanças de posição política, por vezes no mesmo dia.
Há quem acredite mais num do que no outro, mas, face ao silêncio do primeiro-ministro por um lado, que evita falar em público sobre o assunto, nem mesmo quando questionado por jornalistas (o que só por si parece suspeito), e, por outro lado, a verborreia de Ventura sobre a matéria, que produz afirmações categóricas mas não apresenta provas, fica difícil saber o que realmente se passou ao certo.
Não há dúvida que uma destas figuras tem agarrada à pele a fama de mentiroso e a outra nem tanto. Mas de facto ninguém sabe o que se passou dentro das quatro paredes. É a palavra de um contra o outro. O certo é que já Galileu dizia “duas verdades nunca se podem contradizer.”
Vivemos em tempos que alguém caracterizou como de pós-verdade. No mundo em que hoje vivemos o mais importante na comunicação política não é a verdade dos factos mas sim a sua representação. Portanto eles tornaram-se relativos e passíveis das mais inusitadas interpretações.
Um dos expoentes mais elevados desta forma miserável de fazer política é Donald Trump que produz as mais desvairadas afirmações, dignas de uma criança birrenta de cinco anos ou de um indivíduo com profundas limitações nas suas capacidades cognitivas. Os seus indefetíveis nem se dão ao trabalho de pensar pela própria cabeça e analisar o discurso de forma isenta. Pelo contrário, tomam cada afirmação como verdadeira, por mais enganosa que possa ser.
Esta sociedade de autómatos de carne e osso que a pós-verdade está a construir baseia-se sobretudo nas redes sociais, onde não existe mediação jornalística e qualquer indivíduo pode proferir as maiores barbaridades, assim como no acesso a grandes meios de comunicação de massas. Como as coisas estão nem mesmo estes últimos conseguem impedir o “princípio da martelada”, ou seja, que uma mentira depois de algum tempo acaba por parecer verdade depois de muito repetida.
Não é exagero dizer que o futuro dos regimes democráticos está em perigo. Dos estados de direito democrático estamos a passar às chamadas democracias iliberais, um eufemismo envergonhado que pretende caracterizar regimes políticos que não cumprem os mínimos em matéria de garantias democráticas.
É preciso começar a dizer que o rei vai nu. E para isso nem sequer será necessário referir regimes como a Coreia do Norte, a China, o Afeganistão, o Irão, Cuba, a Venezuela, a Síria, a Arábia Saudita e tantos, tantos outros. Como é sabido a Rússia também não tem nada de democrático, e mesmo os Estados Unidos começam a surgir com uma imagem muito pálida em termos democráticos.
Basta ver como o voto popular não conta para eleger um presidente. Basta ver como é praticamente impossível surgirem novas forças no palco político nacional além dos dois partidos, Republicano e Democrata. Basta ver como procuradores e juízes são eleitos por via política. Basta pensar nos mandatos vitalícios dos magistrados do supremo tribunal e da forma como são nomeados.
A fé cristã tornou-se apenas uma marca cultural no ocidente, uma vez que Jesus Cristo se assumiu claramente como a personalização da verdade: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida” (João 14:6). E defendeu que a verdade é libertadora: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (8:32). Mas ocidente está a escolher a pós-verdade.
A sociedade dos autómatos de carne e osso, que não pensam e se conformam em prescindir da verdade, será uma sociedade de escravos. Já não estamos longe disso.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR:
+ O mal não está nas religiões, mas nos maus religiosos
+ Estamos a atirar o ouro borda fora…
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.