Mudou a economia ao diversificar-se e libertar-se dos condicionamentos da guerra colonial. A geopolítica mudou estruturalmente com a adesão à Comunidade Europa. A cultura deixou de estar dentro dum espartilho. A comunicação social libertou-se da prisão da censura. A educação democratizou-se. As universidades ganharam autonomia académica e científica. Os sindicatos passaram a ser livres. A política passou a ser tratada a sério, com o fim do regime de partido único e a extinção da polícia política. Mas onde o País ainda precisa de mudar é no âmbito religioso.
Os políticos saídos da revolução dos cravos acautelaram-se tendo ainda presente a experiência da I República. Afonso Costa seguiu então uma linha de anticlericalismo, além de outros erros como o envolvimento na Grande Guerra, com a motivação de afirmar o Portugal republicano, o que se veio a revelar um desastre. A intolerância religiosa anticatólica levou a que o País profundo criasse anticorpos contra a República. Nessa altura a maior parte da população ainda vivia numa província rural e analfabeta, sendo a exceção os que estavam fixados nas maiores cidades. A sanha cotista despoletou a reação do clero conservador um pouco por todo o país e conduziu ao fenómeno de Fátima e à queda do regime.
Soares, Cunhal e a maioria dos políticos com história sabiam disso e evitaram cair no mesmo erro, tornando-se amistosos para com a igreja católica. Mas tinham um problema. Não entenderam que o país do último quartel do séc. XX era outro e que havia mais religião para lá do catolicismo romano, o que os levou a ignorar olimpicamente outros segmentos religiosos. Foi o primeiro-ministro católico António Guterres, apoiado pelo seu ministro da justiça Vera Jardim e o juiz conselheiro Sousa Brito, que gizaram aquela que viria a ser a Lei de Liberdade Religiosa, promulgada em 2001 – passada uma geração depois de Abril – mas que ainda viria a demorar muitos anos a ser regulamentada.
Apesar de tudo, ainda persiste alguma falta de liberdade religiosa. Em vez de termos ensino religioso promovido pelas confissões nas escolas públicas, em regime opcional, deveríamos ter uma disciplina de Introdução ao Fenómeno Religioso, com carácter obrigatório, que sensibilizasse as nossas crianças e jovens para a realidade do mundo, dando conta das características distintivas e diversidade das tradições religiosas.
Se a escola existe para preparar os estudantes para a sociedade em que vivemos, então o conhecimento das religiões torna-se fundamental neste mundo global e na promoção da paz e boa convivência. Ensina-os a lidar com a diferença, sem dramas, tanto no convívio com os que para cá vêm vindos de outros universos culturais e religiosos e prepara-os para prováveis emigrações.
Em vez de descansar na letra da lei que confere direitos às minorias religiosas – legislação essa que muitos ainda desconhecem – é necessário laicizar as mentalidades na administração pública. Dou um simples exemplo. Ao longo dos anos o ensino religioso nas escolas públicas foi sendo boicotado por funcionários administrativos das escolas – mais papistas que o papa –, que sonegavam informação aos alunos, encaminhando-os para a proposta de ensino religioso católico como se fosse a única. Muitas vezes foi através de reclamações para o Ministério da Educação que se conseguiu fazer cumprir a lei nesta matéria.
Por outro lado, torna-se cada vez mais necessário conseguir uma verdadeira liberdade religiosa. Explico. Nas novas urbanizações é frequente as autarquias atribuírem um espaço para instalações religiosas à igreja católica, mas quase nunca a outras confissões, num claro atropelo aos princípios da constituição da república. Mas também podemos falar do caso de qualquer confissão religiosa ter de criar uma entidade com personalidade jurídica de IPSS para desenvolver trabalho social podendo estabelecer acordos com a Segurança Social, enquanto para uma paróquia católica poder fazê-lo basta uma carta do bispo da diocese a pedi-lo.
E podíamos falar aqui também das capelanias que, apesar de estarem na lei, na prática não funcionam na maior parte dos setores.
Resumindo: passado meio século da instauração de regime democrático ainda falta levar a legislação da liberdade religiosa à prática concreta e objetiva no terreno e, o mais difícil, atualizar as mentalidades retrógradas que ainda persistem na sociedade e no aparelho de estado.
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