O Miguel é meu amigo de Facebook. Significa isso que nos cruzámos uma vez há muito tempo num ginásio que ambos frequentávamos e ficámos ligados nessa rede. Sei muito pouco do Miguel, mas volta e meia vou lendo posts nos quais vai pedindo ajuda na sua procura por um sítio onde morar. Nem digo casa, porque normalmente ele procura um quarto que possa pagar. Sei muito pouco do Miguel, mas sei que é português, que trabalha como auxiliar num hospital e divide a vida com uma namorada e um cão, coisa que dificulta a sua busca por um lugar onde viver. No último post do Miguel que li, ele conta como vive numa casa sem condições nenhumas, onde paga 500 euros por um quarto. Está farto da falta de higiene do senhorio e faz um relato bastante gráfico das condições insalubres em que vive, apelando aos que o leem que lhe digam se conhecem um lugar para onde se possa mudar com a companheira e o cão.
A página de Facebook do Miguel está cheia de vídeos contra a cultura woke, posts sobre como a comunidade indiana está a invadir o centro de Lisboa, publicações que questionam a forma como nos últimos anos se começaram a validar vários géneros na cultura ocidental. O Miguel está zangado. E, pelo que é possível perceber pelo que publica nesta rede social, o que o indigna é a forma como outros vivem e a ideia de que a cultura e os valores que lhe serviram de referência são postos em causa. Não julgo o Miguel. Acho mesmo que nos devemos deter um pouco no seu ponto de vista, sem o julgar, procurando entender como um trabalhador no fundo da pirâmide social vê como ameaça outros trabalhadores que estão em condições tão más ou piores do que as suas.
A ideia de “nós e os outros” está presente em quase todas as formulações políticas. É uma forma de entender o mundo, que nos posiciona, que define os terrenos aliados e os inimigos. Não é estranho que seja assim. Há uma tendência humana para entender a conquista de direitos como uma disputa. Para que o nosso território aumente, outro tem de encolher. O que é interessante é que tendamos a identificar como inimigos usurpadores dos nossos direitos seres humanos que estão muito mais frágeis do que nós.
No dia em que vi o post do Miguel sobre as condições degradantes em que é obrigado a viver, foi notícia uma antiga escola em Massamá, que passou a ser arrendada como habitação. Apesar de não ter as mínimas condições de salubridade, nela estavam a viver 13 crianças e 38 adultos, que pagavam entre 250 a 500 euros por aquele teto. As notícias davam conta de que eram todas imigrantes, mas todas (e friso este todas) estavam legais no nosso país.
O preço absurdo que pagam estas pessoas (algumas delas mulheres que acabaram de ser mães) reflete a situação de desespero e o poder que tem quem pode mercadejar e explorar a necessidade que estes imigrantes, mas também pessoas como o Miguel, têm de encontrar um teto. É o mercado a funcionar.
E não se pense que são casos isolados. Veja-se a notícia dada este mês pela SIC que conta como um bispo evangélico cobra quase 400 euros para arrendar quartos improvisados numa garagem no Seixal. Dias mais tarde, a mesma estação encontrou um armazém com dois andares, em Setúbal, onde vivem cerca de 50 pessoas, incluindo pelo menos um bebé.
Na mesma semana, chamou-me a atenção um comunicado da PSP de Viseu que dava conta de uma operação de fiscalização na qual foi detetada “uma zona de dormitório em aparente inconformidade com as normas de construção vigentes”. Chamou-me a atenção o nome que os agentes deram à operação: “Operação Metecos”.
Para os menos versados na Antiguidade Clássica, o comunicado terminava com uma nota elucidativa. “Metecos deriva da palavra original em Grego, que se referia aos estrangeiros residentes nas Polis Grega de Atenas, para exercerem vários ofícios”. Esta é só uma forma erudita e rebuscada de a PSP nos explicar que a operação se destinava a detetar imigrantes ilegais. Não foi bem-sucedida, a avaliar pelo comunicado, que conta que foi feita a “identificação de 30 cidadãos estrangeiros e consequente verificação da legalidade da sua permanência em território nacional”. Estavam todos legais e as condições insalubres em que vivem também não são crime. Mas deviam ser.
Em França, é crime explorar a fragilidade de quem procura um teto, arrendando espaços que não reúnem condições de habitabilidade. Estes criminosos têm até um nome poético. São os “marchands de sommeil”, os mercadores de sono. E o Código Penal francês prevê até sete anos de prisão e multas que podem chegar aos 200 mil euros para aqueles que “abusam diretamente, ou através de um intermediário, da situação de vulnerabilidade ou de dependência, aparente ou conhecida, em que alguém se encontra, para vender, arrendar ou pôr à disposição, com a intenção de conseguir um lucro anormal, um imóvel, um quarto ou outro espaço (…) em condições incompatíveis com a dignidade humana”. A pena pode subir para os 10 anos caso estejam em causa grupos de pessoas ou menores.
A vantagem de ter uma lei como esta não é só (embora também seja) punir os exploradores que lucram com o desespero dos outros. É que o Miguel perceba contra quem deve dirigir a sua justa raiva. E que a polícia passe a perseguir não os Metecos, mas quem os explora.
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