Este ano, muitas das mensagens de aniversário chegaram com desabafos de desalento. “Coragem! Este mundo está do avesso”, escrevia uma amiga. “Estou preocupado com o mundo”, acrescentava um amigo. E sempre esta ideia de que o que está à frente é pior, mesmo que o que se deseje seja celebrar esse ano que aí vem. Talvez esteja a ficar velha, pensei. Os velhos sempre acreditaram que o fim do mundo está próximo. E está. A cada morte há um mundo que se acaba. E talvez a proximidade desse final nos faça acreditar que tudo se deslassa e desaba, talvez para que nos custe menos a partida de um lugar que já não é bom.
Sim, estou a ficar velha. Mas o mundo também. O mundo envelhece quando perde a esperança. Deixar de sonhar é o primeiro sinal de degenerescência, de desistência e, enfim, de falência.
Como continuar se não acreditamos que o que aí vem é melhor? E não me refiro ao punhado de amigos que envelhece comigo, mas a esta ideia que se foi instalando no âmago de todos de que não há alternativas. A ideia de que a utopia deixou de ser o lugar com que se sonha para se esfumar num riso de escárnio descrente. A ideia de que tudo o que está mal não tem remédio e de que não há nada que possamos fazer para o mudar.
A desistência é a pior de todas as derrotas. O desânimo é o pior de todos os venenos. Deixa-nos a apodrecer lentamente. Faz com que todas as coisas se equivalham. Não há bem nem há mal. Há um encolher de ombros perpétuo e desalentado.
E é no meio disso que melhor nasce a raiva. A raiva é o que sobra quando acreditamos que não há um movimento que nos leve para um lugar melhor. A raiva faz-nos esbracejar. E esbracejar parece ser o único movimento que nos resta. Por isso, esbracejamos. Enraivecemo-nos.
Mas a raiva precisa de combustível. Para a manter acesa é preciso o ódio. É preciso encontrar inimigos. Não temos para onde ir, mas encontramos um objetivo neste ódio que alimenta a raiva e nos dá a ilusão de estarmos a fazer alguma coisa, quando nada mais parece possível.
A nossa raiva parece-nos justificada. Mas e a dos outros? A dos outros causa-nos medo. Porque sabemos que também nós seremos um dia incinerados nessa pira de raiva e ódio. Mesmo quando fingimos achar que estamos a salvo, tememos secretamente esta raiva que nos rodeia. Sabemos que é cega e tem fome de vítimas.
É por o sabermos que tememos o mundo. Vemos ao longe, como uma vaga que se agiganta, essa tempestade que sabemos que virá para nos engolir.
Chegou-me por estes dias, por mensagem, uma frase atribuída a Hannah Arendt. “Vivemos tempos sombrios. As piores pessoas perderam o medo e as melhores a esperança”. E é nesta mensagem, aparentemente desalentada, que podemos encontrar essa esperança que se diz perdida.
É que Arendt viu o horror e sobreviveu-lhe. Os que, como eu, nasceram muito depois pisaram esse chão aberto e limpo de promessa e liberdade, construído sobre os escombros da derrota do que há de pior na Humanidade.
E é por aí que temos de ir, sabendo que a cada onda de medo e opressão que se aproxima, cabe-nos dar o peito e mostrar o caminho, porque ele existe, mas apenas se acreditarmos nele. Quando o começarmos a imaginar, ele começará a aparecer. E, então, estas frases de desalento parecerão apenas a memória de umas trevas que já deixámos (outra vez) para trás.