A minha mãe tinha na estante da sala o nosso livro de instruções. Era um volume grosso, encadernado a vermelho, com letras douradas. O título era bem o resumo de como olhava para nós. “Meu filho, meu tesouro”, assim no singular, mas lá em casa multiplicado por três. E o nome do autor, Benjamin Spock, a quem a minha mãe citava sempre com o prefixo “doutor”, era invocado como sinónimo de autoridade.
Ouvi muitas vezes os relatos da infância (muito privilegiada) dos meus pais, que incluíam os horrores de serem obrigados a comer na cozinha com as empregadas, passagens por colégios internos ou de freiras ou, pelo menos, com uma diretora de palmatória em riste, e brinquedos que só chegavam em dias festivos muito especiais. Tudo isto ouvi descrito como “traumas”.
Acho que fiquei tão traumatizada com a tentativa (infrutífera) dos meus pais de me evitarem os traumas deles, que durante anos não suportava sequer ouvir a palavra sem um revirar de olhos de enfado. Os traumas pareciam-me tão reais como a Fada dos Dentes ou o Pai Natal, quando deixei de acreditar neles. E, claro, à revelia do que seguramente queriam, os meus pais nutriram-me com um bom leque de traumas.
É capaz de ser por ter este histórico que hoje tenho uma tolerância muito grande àquilo que acho que pode ou não constituir um trauma para os meus filhos. Não se enganem, estou longe de ser uma mãe descontraída daquelas muito cool, mas sou muitas vezes aquele bicho raro que acha que os miúdos sobrevivem a muito mais do que pensamos ser possível e que a frustração é uma peça essencial à sobrevivência.
Não percebem porque digo que sou um bicho raro? É porque talvez não andem nos subterrâneos dos grupos de pais no WhatsApp, não frequentem reuniões da escola e não tenham cometido a audácia de se envolverem na associação de encarregados de educação. Se querem um campo de batalha ideológico, não é no Parlamento que o vão encontrar: é nestes lugares.
Haverá poucas coisas que mais dividam os seres humanos do primeiro mundo do que a forma como educam os filhos. Começa na fraturante discussão sobre métodos de introdução alimentar e vai por aí adiante, com batalhas campais sobre quais os castigos adequados (se é que há algum), os decibéis que os professores podem atingir sem serem acusados de maus-tratos ou a forma como ensinamos os limites do corpo e o respeito pelo outro aos nossos filhos. Sim, até a decência pode ser problemática.
Organizar uma sessão de poesia contra o racismo e a xenofobia na escola pode dar direito a e-mails inflamados de pais que acham que a simples referência ao termo está a criar pequenos racistas que, até essa data, “tanto dão a mão a um branco, como a um cigano ou a um preto [sic]”, porque “as crianças não veem cores”.
Uma educadora que resolve criar numa sala da creche um “lugar do juízo”, onde as crianças são incentivadas a refletir sobre as suas ações depois de se portarem mal, pode ser motivo para a criação de um abaixo-assinado, que proteja os infantes de tal horror.
Uma creche que institui uma hora de sesta e obriga todos os meninos a, pelo menos, estarem deitados em silêncio e às escuras durante esse momento, pode ser acusada de “não respeitar as necessidades das crianças”.
Acho que já perceberam a ideia. E aos que acham que estou a exagerar, garanto que todos os exemplos se baseiam em factos verídicos e que tinha muitos mais para dar.
Estamos obcecados com os nossos filhos. Ou talvez estejamos obcecados com a ideia de sermos absolutamente prefeitos. E é por isso que, só na última semana, recebi de várias amigas os links de quatro textos (dois deles de jornais internacionais) sobre o burnout parental.
Na busca pela perfeição, estamos a queimar pontes com outros pais que nos rodeiam e que deviam fazer parte da tal aldeia que é preciso para educar uma criança. Estamos a hipervalorizar episódios menores que muito dificilmente deixarão qualquer marca nos nossos filhos. E, acima de tudo, estamos a gastar energias que nos seriam preciosas para cuidar deles, ensinando-lhes que a vida não tem de ser uma batalha permanente, que há muitas maneiras de ver o mundo e que não têm de ser perfeitos para serem perfeitos.
Acho que estamos a precisar de um lugar do juízo.
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