Quando oiço falar de reformas estruturais saco da pistola. O paleio das reformas estruturais serve, apenas, para disfarçar duas coisas: primeiro, para embrulhar no papel florido da retórica o anúncio de más notícias para o Zé. Segundo, para disfarçar uma postura de inação: usa-se quando não se pretende fazer nada de concreto. Querem uma reforma estrutural a sério? Ataquem as causas dos incêndios “florestais” em Portugal. Nenhuma reflexão sobre o incêndio de Pedrogão Grande pode esquecer as vítimas mortais nem as vítimas que sobreviveram. Essa deve ser a principal preocupação dos políticos (Governo e Oposição), dos serviços públicos, da sociedade civil, da comunicação social e do legislador que vier a introduzir mudanças no ordenamento do território.
Propositadamente, coloquei o termo “florestais” entre aspas. Verdadeiramente, Portugal quase não tem florestas e as poucas que tem, como o Pinhal de Leiria ou os eucaliptais das celuloses, são seguríssimas. O que o País tem é mato, silvas, arbustos, pinheiros e eucaliptos plantados anarquicamente ou nascidos por geração expontânea, em resultado do abandono dos campos, misturados com aglomerados populacionais dispersos e casas construídas, com a conivência das autarquias, assentes em barris de pólvora. Recorrentemente, vemos o drama que é deitar abaixo casas clandestinas na orla marítima. E o folclore televisivo que se alimenta de sangue e peixeirada e a dificuldade que é, para as autoridades, imporem alguma ordem nesse mosaico ambiental sensível. Imagine-se o que não seria se um Governo, ou uma autarquia, aparecesse em lugarejos perdidos no mato para deitar tudo abaixo (casas que nem são clandestinas…) e recolocar as pessoas em aldeias reconstruídas seguras. Lembram-se de como foi dramático submergir a Aldeia da Luz, mesmo sabendo-se que seria construída uma réplica, novinha em folha, com os acabamentos escolhidos a la carte pelos habitantes?…
Porque é disto que estamos a falar: medidas difíceis. Limpeza coerciva dos terrenos, abertura de acessos com as máquinas das autarquias, mesmo passando por cima de propriedade privada, casas demolidas, mato queimado sob fogo controlado, mesmo em terrenos privados, obrigatoriedade de submeter a gestão das matas a uma entidade gestora comum (as famosas mas inoperativas ZIFs – Zonas de Intervenção Florestal), necessidade de licença de plantação de determinadas espécies e rigorosa proibição da plantação de outras. É preciso fazer sangue. Perder votos. Impôr a força. Gastar dinheiro – e não é assim tanto: fica mais barato do que apetrechar sem critéiro, ou mesmo inagurar, todos os anos, novos quartéis de bombeiros, piscinas municipais sem utilização, gimnodesportivos às moscas ou rotundas sem nexo. Para entrar a matar, é preciso compensar as pessoas afetadas, dotar de poderes e meios as Câmaras Municipais. Algumas das medidas aprovadas em Conselho de Ministros em outubro do ano passado, na Lousã, ou o pacote que o Parlamento se prepara para aprovar à pressa, depois de ter andado a engonhar, só terão efeitos, como reconhece o próprio ministro da Agricultura, daqui a anos. Ora, como dizia Keynes, a longo prazo já estaremos todos mortos. E para o ano?
Para o ano podem tomar-se algumas medidas de emergência para salvar vidas e bens. Muito bem: muitos pequenos proprietários, pobres e envelhecidos, não têm meios – nem há pessoal! – para limpar os terrenos. Então, se houver cobertura legal, as máquinas das autarquias podem fazê-lo por eles, ou pelo menos, desmatar locais mais perigosos ou densos, mesmo que seja com fogo controlado. E podem contratar gente que o faça, noutras regiões do País ou lá fora. Podem, também, estabelecer perímetros de segurança à volta das casas, queiram ou não queiram os seus proprietários. E podem começar a abrir acessos em locais críticos. Há casas, como muitas das que arderam agora, que têm de ser demolidas e os seus proprietários e habitantes ressarcidos e realojados. O cenário de Pedrogão Grande é um cenário de guerra. O País e o poder político tem de atuar como se de uma guerra se tratasse.
Começa, agora, a pedir-se responsabilidades políticas pelo que aconteceu. Este incêndio é uma péssima notícia para António Costa e o seu Governo. O diabo chegou, e veio, como convém, envolvido em chamas. Independentemente das responsabilidades que o Governo tenha ou não tenha, esta catástrofe seria sempre nefasta para qualquer político com responsabilidades. Especialmente, no caso de um Governo apenas habituado a lidar com boas notícias e a pintar de cor-de-rosa o País, sobretudo em contraste com o período negro da troika a que, mal ou bem, o Governo anterior deu corpo. Este incêndio é um rombo no porta-aviões de Costa e ainda veremos até que ponto marcará, ou não, uma viragem no estado de graça da “geringonça”. Depende do talento político do primeiro-ministro (que ninguém nega), mas a «prova de fogo» – e nunca esta expressão foi tão apropriada… – vai ser dura de superar. No mínimo, instalou-se a dúvida no eleitorado. Mas há um reverso da medalha: é verdade que a oposição tem estado contida. No entanto, os seus operadores das redes sociais, que não têm responsabilidades públicas mas, claramente, estão instruídos para dizer o que os estados-maiores partidários (ainda) não podem dizer, já começaram, no próprio minuto em que se soube dos primeiros mortos, a fazer o seu trabalho de sapa e de desgaste, preparando o terreno para o que aí vem. É preciso, porém, cautela. Neste caso particular, – mas é só um feeling… – assacar responsabilidades ao Governo anterior ou pedir a queda do atual, ou o rolar de algumas cabeças que o integram, pode não ter o retorno esperado para quem o fizer. As pessoas não são estúpidas, e estão muito sensíveis. Não perdoarão a quem se aproveitar da morte dos cidadãos caídos na estrada N236 para fazer política partidária. Tenham muito cuidado: o exercício de necrofagia política, a propósito dos mortos de Pedrogão Grande, vai virar-se contra quem o praticar.
Isto dito, há perplexidades que devem ser desvanecidas. Elencaremos as que nos fazem mais “espécie”, pedindo que se dê o devido desconto à nossa qualidade de leigos:
1 – Como chegou a Polícia Judiciária à tese do relâmpago e descartou, num par de horas, a hipótese de fogo posto?
2 – Se assim foi, por que razão, dias depois, as autoridades e o próprio Governo anunciavam medidas para apurar a origem do incêndio? E vindo, dias mais tarde, o presidente da Liga de Bombeiros e antigo autarca eleito pelo PSD em Vila Nova de Poiares agitar a tese de “crime”, sabendo-se que ficou calado quando a PJ o descartou?
3 – Em milhares de incêndios, nos últimos anos, vimos sempre a prioridade dos bombeiros de colocarem os seus meios a salvar casas. E conseguem-no, praticamente, sempre. Então, porque arderam tantas, desta vez, sem que nenhum bombeiro ocorresse?
4 – Afinal, houve ou não houve trovoada, àquela hora, na zona onde o incêndio começou? Porque demora tanto tempo a saber-se isso com certeza, e porque é que os alegados registos de descargas elétricas não coincidem com as declarações de inúmeras testemunhas in loco, que afirmam não ter ouvido qualquer trovão?
Finalmente, duas questões de caráter geral, que têm a ver com o funcionamento e a estratégia de uma verdadeira proteção civil:
5 – Não sendo possível ter um autotanque junto de cada casa ou lugarejo, porque razão, em dias assim, os bombeiros de uma determinada região não fazem, durante o período crítico – de maior calor, por exemplo, – rondas pelas estradas, caminhos e aldeias, mostrando-se antecipadamente preparados, e já no terreno, para qualquer eventualidade? Como se fossem “tipo” os “polícias de giro”?
6 – Finalmente, porque não estão as populações informadas sobre os procedimentos a tomar em caso de sinistro – como acontece com os japoneses, na questão dos terramotos – evitando o pânico e reações erradas como a da fuga suicida em direção à estrada da morte?