A biografia é um género literário que não me atrai. Com formação de base em História, reconheço que um dos problemas culturais e, eventualmente, psicológicos, de Portugal, reside na fraca tradição da biografia. Mas não gosto de as ler. Facilmente são laudatórias, procurando reescrever a história a seu gosto. Há uma tentação revisionista nesse género que não consegue nenhuma objetividade, como é normal em que assistiu na primeira pessoa a um evento.
Ao contrário, a biografia romanceada é um campo de liberdade, uma possibilidade de trazer, a reboque da história de vida de um indivíduo, a complexidade em que ele se inseria. Com algumas amarras factuais, inevitáveis da dimensão biográfica, o fundamental encontra-se na liberdade literária do autor.
Cristina Carvalho, depois de nos ter brindado com várias biografias de ilustres personalidades das artes e da cultura (todos estrangeiros), lançou-se na tarefa de dar a sua pena à vida de Paula Rego, num livro que de forma muito feliz subintitulou como “A Luz e a Sombra”, sendo, de facto, esses dois elementos as personagens centrais na vida desta atormentada pintora.
Para mim, como leitor, este livro teve um especial atrativo. Não que a arte não me interesse e a vida desta espantosa mulher não me cative. Mas a temática das identidades é-me muito mais aliciante, faz parte da minha forma de funcionar, vendo o mundo, interpretando-o.
Ler este trabalho de Cristina Carvalho é ser confrontado com duas dimensões profundíssimas da nossa cosmovisão coletiva. Por um lado, a forma como nos agarramos à linguagem e à imagética do mito, especialmente através dos imaginários que nos são transmitidos na infância, através de contos e lendas, maturados e aprimorados ao longo de gerações. Por outro lado, a forma como nos relacionamos com os estados desviantes, com as fugas à normalidade, o espaço que damos a quem tem vivências interiores diferentes e intensas que, muitas vezes, rasam a fronteira da loucura, da inebriação ou, pelo menos, da profunda depressão.
A imagética do mito, a linguagem do mito, é omnipresente na narrativa que Cristina Carvalho nos oferece. Paula Rego alimentou-se toda a vida desse imaginário que começou a receber enquanto criança. Monstros, figuras demoníacas, situações de dor e de sofrimento, tudo moldou durante milénios de aprendizagem dos medos que a nossa sociedade foi dando às gerações vindouras. Um medo que, ao mesmo tempo, cria repulsa, aquilo de que se foge, mas que é fascínio, material para pensamento ou, no caso da Paula Rego, para pintura e desenho.
Mas não são apenas figuras que ajudam a criar um estilo gráfico. O universo onírico é constitutivo, é parte integrante de quem o usa ou dele é refém. Os medos, sistematizados nos grandes estereótipos, personagens e situações que as lendas tradicionais nos trazem, é organização desses mesmos medos, é inconsciente coletivo, nas palavras do psicanalista e, de forma rica, um quase consciente individual. Dele, Paula Rego tem noção, dele se alimenta e com ele cai num quase delírio que é criatividade reativa através da superação do medo pelo êxtase do ato criador.
Esta constante presença do medo, da necessidade de solidão e de afastamento, esta proximidade frequente à neurose, remete-nos para algo ainda mais interessante na forma como Cristina Carvalho nos traz a natureza humana através de uma biografia excecional. Essa loucura que trespassa toda a narrativa, é a lucidez que permite ao criador, à Paula Rego, como que aceder a uma capacidade de sublimar a própria natureza humana, como que recriando o discurso do mito nos dramas das mulheres que retratou ao longo da sua vida. “É-me difícil encarar um desenho sem culpas” (p. 134), coloca Cristina na boca de Paula.
Contudo, o que mais nos pode espantar, se leitor atento formos, é que ambas as linhas narrativas antes apontadas são imagem de um tempo e de uma sociedade. Sejam as lendas e narrativas tradicionais, que nas últimas dezenas de anos perderam como que o seu ecossistema tradicional, de passagem de avós a netos, à lareira ou na boda da cama, e se laicizaram em desenhos animados e livros infantis suavizados, ou a maneira como encaramos e o espaço que damos às formas desviantes de ser e de viver, são imagem da sociedade que temos à nossa frente, cada vez mais higienizada.
“A dedicação e a atenção que lhes ofereci, a “eternização” pintada desses mesmos contos absolutamente terríveis, pois só uma sociedade miserável de ignorância e de pobreza consegue conter e manter esse desgraçado folclore.” (p. 118)
A equação residirá, então, na própria forma como a pintora se foi encaixando num mundo que, desaparecendo, foi construindo dentro de si. Profundamente portuguesa na herança desse imaginário, foi fora de Portugal que a sua força criadora teve lugar. “Não me sinto portuguesa nem inglesa. Sou de Londres”. Paula Rego era Paula Rego. Nada mais, nem menos. Uma singularidade para a qual Cristina Carvalho muito bem nos transporta.
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