“Preciso de munições, não de boleia!” Senti um arrepio quando li a frase que Volodymyr Zelenski terá dito a altas patentes americanas quando estas lhe ofereceram para os seus préstimos para o evacuar de Kiev numa operação relâmpago, para o colocar em segurança onde pudesse montar um governo no exílio. Num vídeo publicado hoje, gravado com o seu telemóvel, mostrava-se sereno, com um discreto mas quase confiante sorriso na cara e vestido de roupa militar, no meio de uma Kiev que amanhece deserta depois de uma noite de luta intensa. Disse ao mundo que não vai abandonar a Ucrânia e que não larga à sua sorte a sua nação e os seus mais de 40 milhões de compatriotas. E que resiste.
No dia anterior, Zelensky foi claríssimo: os ucranianos estavam sozinhos. Mais: explicou, com toda a calma, que aquela podia bem ser a última vez que o veríamos vivo. Ele não estava, infelizmente, a exagerar. A sua execução é algo mais do que compaginável. Sabemos bem como Putin e os seus cães de fila tratam os inimigos. Que o digam Alexei Navalny, Alexandre Litvinenko, Anna Politkoskaya, Viktor Yushchenko, Boris Nemtsov, Sergei Skripal, Natália Estemirova (a lista podia continuar…) que se opuseram a Putin e que se pensa que foram mortos ou envenenados por instrução do Kremlin. Num cenário de guerra, em que o Presidente da Ucrânia é, num esforço lunático de propaganda russa para consumo interno, acusado de ser o inimigo nazi, as hipóteses de ser abatido são elevadas.
Outros chefes de estado na sua posição já teriam certamente saído. Foi aliás o que fez o seu antecessor Yanukovych, em 2014. Ou, para ir lá mais atrás, Charles de Gaulle, que foi evacuado para Inglaterra quando França foi ocupada. Esta guerra não se ganha numa semana, pode arrastar-se por meses ou anos. Se Zelensky sair, não será de estranhar. Nem será de estranhar se, perante um fechar de portas da NATO e da UE, ceder e pragmaticamente negociar uma neutralidade que não deseja, mas que pode salvar muitas vidas.
Zelensky, 44 anos, casado e com dois filhos, é afinal um homem comum, um produto de uma geração europeia educada, conectada e urbana. Formou-se em direito, foi ator, argumentista, produtor de cinema, humorista. Chegou por portas travessas ao Palácio Mariyinsky. Durante quatro anos, desempenhou o papel de Presidente da Ucrânia numa série popular. A realidade superou a ficção e conseguiu ser eleito para o cargo real com um discurso de proximidade anti-elites, anti-políticos e anti-corrupção. A verdade é que ninguém dava grande coisa pela sua liderança. No final do ano passado viu-se mesmo enredado num escândalo dos Pandora Papers, acusado de alegado envolvimento numa rede de suspeitas empresas offshore.
Mas, contra muitas expectativas, está a revelar-se um verdadeiro herói no maior papel da sua vida.
São os momentos de grande stress que mostram de que fibra é feito um grande líder. E este não é só um momento de grande stress – este é um instante limite, uma circunstância de vida ou morte. Zelensky aguenta-se firme e mostrou como se faz: lidera pelo exemplo, inspira compatriotas a não desistir, comunica e envolve a opinião pública e a comunidade internacional, mostra força, determinação e coragem.
Como dizia Anne Applebaum, uma das maiores especialistas em história russa e totalitarismos, “quem não luta contra os autocratas fora de portas, vai encontrá-los em casa.” Zelensky está a lutar por todos nós. Pelos que estamos sentados no sofá a ver a guerra acontecer pelos ecrãs. Pelos líderes do mundo livre sem coragem para realmente fazer frente a um ditador. Pelos chefes de Estado europeus que podem ser os próximos alvos.
Enquanto ele e os ucranianos resistem a um inimigo poderoso, que na verdade também é nosso, e lutam debaixo de fogo, os outros líderes andam a fazer continhas aos efeitos secundários da suspensão da Rússia do swift e de um avolumar das sanções, que são deitadas cá para fora a conta-gotas, para não causar grandes mossas. Amigos, amigos, guerras à parte… Valores humanitários sim, mas vamos lá ver a que custo os podemos defender.
Zelensky e os ucranianos entrarão para a História como um raro caso de um David contra Golias – os pequenos resistentes que se opuseram ao vil Vladimir Putin, mesmo no meio da Europa. Até agora sozinhos, ou quase. O que devia fazer-nos a todos corar de vergonha.