Todos os anos por esta altura, tenho vontade de pegar na minha prole e zarpar. É que, todos os anos por esta altura, fica plasmada a nossa pobreza numa resma de páginas de orçamento e outras tantas páginas de jornal. A operação de fazer omeletes sem ovos, a ginástica de tentar esticar a manta com que se tapa a cabeça mas destapa os pés, a tentativa de disfarçar para fora o que é por mais evidente que não há cá dentro deixa-me consternada. Invade-me uma espécie de vergonha alheia, só que alheios não somos todos nós. Somos partes e somos vítimas.
Só que, sabe-se lá porquê, se ama um país independentemente do que ele tem para nos oferecer, tal como se ama alguém de bolsos vazios e coração cheio. Temos este canto mágico da Europa, já se sabe. Temos tudo para sermos felizes aqui – aliás a Visão recolheu nesta edição 73 razões para celebrarmos Portugal – só não temos é dinheiro.
Quando ontem à noite, na redacção em frente ao computador, assistia à conferência de imprensa de Mário Centeno a explicar o orçamento e a debitar grandes números, não consegui tirar os olhos das suas enormes olheiras. Eram negras e cavadas, depois de, com toda a certeza, dias a fio a dever horas à cama. Todos os anos é um jogo de loucos e este ano foi mais louco ainda: tentar tirar da bancarrota um país ao mesmo tempo que se tenta equilibrar promessas eleitoriais de três partidos, distribuindo o pouco que temos da forma menos injusta possível, é como a missão do equilibrista com 27 bolas no ar que não pode deixar cair nenhuma. Vamos a ver se nos entendemos: não há em Portugal orçamentos justos porque em Portugal não há dinheiro.
Depois de quase 20 anos a acompanhar orçamentos, deitei-me sem me apetecer escrever uma linha: para dizer o quê? Discutir o parafuso e não a Torre Eiffel? Olhar para o arbusto e não para a floresta? Que tributar o património vai esvaziar a euforia em torno do imobiliário? Que a regra de eliminação da sobretaxa está pouco clara e não se percebe se o que acaba é em 2017 é sobretaxa ou a retenção na fonte? Que é uma conquista da classe operária ter mais 10 euros de pensões? Que é menos mau porque foram reintroduzidos os abonos de família para as famílias do quarto escalão e que os outros aumentaram uma ninharia? Que aumentar o iva dos refrigerantes não chega e se devia era baixar o iva dos produtos saudáveis? Que com sorte só vamos crescer 1,2% este ano e o défice será de 2,4%? Que é muito difícil chegarmos ao défice de 1,6% do PIB previsto para o próximo ano?
Ouvir os comentadores do costume a dizer as coisas do costume cansa-me um bocadinho, confesso. Este é um orçamento ideológico, bradou-se. Mas claro que é, e não havia de ser? Qual é então a ideia: fazer orçamentos sem olhar à vontade de quem votou e se representa? Sim, este é um orçamento mais à esquerda, onde se tenta tirar de quem tem um nadinha mais para dar um nadinha a quem tem menos. Parece-me um orçamento arriscado e esforçado, mas este, tal como todos os outros em Portugal, é um orçamento injusto.
Estamos todos, mas todos, de acordo nisto: nós portugueses merecíamos tanto mais. Merecíamos ter uma classe média que não chegasse ao fim do mês sem contar tostões e que até conseguisse poupar qualquer coisa. Merecíamos ter pensões de reforma médias que dessem para pagar os médicos e os medicamentos e os lares. Merecíamos ter incentivos orçamentais à natalidade e acarinhar os pais que arriscam essa loucura orçamental de ter filhos. Merecíamos não ter crianças a chegar à escola de manhã sem nada para comer, porque os pais estão desempregados e perderam os subsídios. Merecíamos ter mais para dar aos nossos médicos e polícias, aos nossos professores e aos nossos artistas. E tudo isto é pedir muito? Não é, mas sim, é.
Voltemos à terra: somos um país pobre. Pobre, aos níveis europeus, envelhecido e endividado até ao tutano. A discussão desfoca sempre deste facto inalienável que, percebo, preferimos todos tentar esquecer. Mas adianta chorar porque o céu é azul ou o mar batido? Somos o que somos, e não vejo maneira de ganharmos de um dia para o outro o Toque de Midas que tanto precisávamos. A solução está nos clusters industriais, na economia do mar, nas energias renováveis ou no sonho de sermos o Silicon Valley da Europa? Não sei, não podemos encolher os braços, mas tenho dúvidas. Mas sei que somos um país onde se faz do pão, ovo e ervas do campo um manjar dos deuses. Somos mestres na criatividade e na arte do desenrascanço, em dar a volta por cima quando todos os ventos nos empurram para baixo.
Meti a resma de papel para o lado e fui dormir. Sonhei com as ilhas encantadas dos Açores que só descobri aos 40 anos (como é possível?!) e com o surf em família nos dias de sol de inverno. Acordei e os pensamentos de zarpar daqui para fora tinham-se esvaído com a chuva da madrugada. Os portugueses hão-de sobreviver a mais um orçamento injusto. E, mais incrível ainda, quase sempre com um sorriso na cara.