Numa semana marcada pela suspensão-reposição da vacina AstraZeneca, 70 mil motoristas ingleses da Uber festejam um passo importante na luta pelos seus direitos. Derrotada no Supremo Tribunal britânico, a empresa passou a ter de reconhecê-los como assalariados no país – e não como trabalhadores independentes, como no resto do mundo. À luz do novo estatuto, os motoristas têm direito a benefícios, férias pagas e salário mínimo. Se a pandemia veio destacar o contributo essencial dos trabalhadores das plataformas digitais de transportes e entregas, é de esperar que a lei o reflita, exigindo às empresas que ofereçam condições laborais dignas.
Há três semanas, a Comissão Europeia iniciou uma consulta aos parceiros sociais com o objetivo de garantir mais direitos aos trabalhadores das plataformas digitais. Em comunicado, a instituição observa o contraste entre o rápido desenvolvimento destas plataformas e a precariedade frequente nos vínculos laborais. Muitas destas atividades – dos serviços de transporte (Uber ou Bolt) às entregas (Glovo, Deliveroo ou Uber Eats) – expõem os profissionais a elevados riscos para a saúde e segurança, não oferecendo qualquer tipo de proteção ou benefício social. No mundo, são milhões os trabalhadores que garantem o funcionamento destes serviços sem usufruir de direitos básicos. A Organização Internacional do Trabalho já apelou ao esforço dos países para considerar esta realidade.
Em Portugal, o Governo está a trabalhar numa “Lei Uber”, que pretende trazer legislação específica para os empregos nas plataformas, para além dos domínios dos transportes e entregas. O projeto pretende englobar também as digitais de serviços de limpezas, cuidados a crianças e idosos, pequenas reparações, ou mesmo design ou tradução. Oferecendo incontestáveis confortos para quem consome ou quem contrata, estes serviços têm proliferado à custa de uma força de trabalho anónima e desprotegida. Há dinâmicas interessantes na economia do biscate, onde todos podem fazer umas horas ao volante de um Uber, se quiserem ou precisarem, desde que os direitos laborais sejam assegurados. Caberá aos organismos responsáveis ter capacidade para legislar e negociar com as empresas digitais, no sentido de tornar isso possível.
A regulamentação do mundo digital é, e será nos próximos tempos, um dos maiores desafios para a política mundial. Exigir respeito dos códigos laborais é só um primeiro passo. A mesma Internet que deu azo às maiores maravilhas tecnológicas da História, conectando pessoas e democratizando conhecimento, é também berço de colossos de dimensão inédita, cujos impactos ameaçam conquistas civilizacionais, interferindo na nossa privacidade e liberdade. O poder concentrado pelas gigantes digitais (Google, Facebook, Apple, Amazon) é incomparável ao de qualquer outra organização na História e o braço-de-ferro com o poder político mundial já começou. No livro A Era do Capitalismo de Vigilância, Shoshana Zuboff lembra-nos de como as sociedades evoluíram no último século, criando mecanismos intrincados para proteger as instituições de governos tiranos, mas deixaram o campo aberto a projetos corporativos vorazes, que encontraram na Internet o faroeste sem lei de que precisavam para crescer. Algumas destas empresas maravilharam o mundo com serviços dos quais já não abdicaríamos – isso não está em causa -, mas terão, como qualquer indivíduo ou organização, de ser regulados pelo bem de todos. Em nome de um futuro sustentável. Esse processo já está a decorrer e só será possível com a mobilização de toda a inteligência, toda a coragem e toda a cooperação.
As principais reivindicações dos trabalhadores das apps – como o salário mínimo, o regime contributivo ou o gozo de férias – incluem direitos conquistados há mais de 100 anos. Neste plano, não deixa de ser curioso que tantas empresas do universo digital, movidas pela ideia do progresso e do futuro, pareçam não refletir sobre o regresso ao séc. XIX quando se trata de compensar quem trabalha. O mesmo se aplica ao campo da privacidade ou aos códigos deontológicos dos órgãos de comunicação, que o digital põe em causa. São questões seculares.
Ao contrário do que possa parecer, legislar com clareza sobre a esfera digital, impondo limites, não é retardar o progresso tecnológico ou impedir o futuro, numa deriva conservadora. Regulamentar o reino digital é garantir que o progresso da tecnologia acompanha o progresso da sociedade, dos direitos humanos e da qualidade de vida.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.