Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Adeus, 2020, não deixarás saudades. Se, por um lado, o tsunami da crise pandémica resistiu ao réveillon, saltando a fronteira anual, entramos em 2021 com bazucas e vacinas para o enfrentar. Que venha ele. Desengane-se quem der o problema como ultrapassado – não está sequer a meio -, mas vemos, finalmente, uma luz ao fundo do túnel. Não é, portanto, hora para lançar foguetes, mas note-se o quanto essa mesma luz foi, tantas vezes, tudo aquilo que pedimos em 2020, perdidos nas trevas do vírus. Sem arriscar previsões, é de acreditar que podemos esperar duas grandes fases em 2021: o capítulo da vacinação e a lenta amenização da pandemia, seguido do arranque paulatino da recuperação na Europa. Para tal, teremos de concentrar muito trabalho, muita competência e muita humanidade. Não é, portanto, um ano de grandes optimismos ou pessimismos, mas antes uma era de ação e mobilização.
Independentemente do abalo nesta época festiva, é importante que tenhamos tomado o balanço possível, ou nunca estaremos à altura da odisseia que se avizinha. Entrar num ciclo previsivelmente tortuoso depois de um período que nos deixou de rastos parece paga de uma promessa macabra que alguém fez para se autopunir. No futuro, teremos contas a ajustar com os seres superiores deste mundo e direito divino à tão merecida catarse coletiva. Andamos, aliás, há quase um ano a jurar festas de arromba uns aos outros – “quando isto tudo acabar” – na terna expectativa de que essa garantia dê um laivo que seja de ânimo às pessoas de quem gostamos. Em “Apollo’s Arrow: The Profound and Enduring Impact of Coronavirus on the Way We Live”, Nicholas Christakis prevê que o fim da pandemia e a aceleração da recuperação económica possam resultar nuns novos Loucos Anos 20, dentro de uns tempos. O professor estima que, depois da tempestade, venha o frenesim. Quem sabe também o charleston regressará, ou uma nova dança adequada à época. É consolador acreditar que sim, mas, por agora, temos várias contendas ciclópicas a disputar.
A vacinação. Provando que uma crise sem precedentes só se combate com uma união sem precedentes, a comunidade científica, os governos e as empresas conjugaram esforços como nunca, desenvolvendo e pondo a circular vacinas seguras num recorde absoluto de tempo. Quer queiramos, quer não, é uma extraordinária vitória da ciência e do progresso humano. O que se segue é um desafio gigantesco, também sem precedentes: vacinar toda a gente, numa operação de escala planetária – garantindo um processo seguro, transparente e igualitário, que proteja os mais fracos e os mais pobres, regido pela justiça e pelos direitos humanos. Num mundo contemporâneo desigual e individualista, abalado pelo desespero natural ao momento, é ainda mais difícil. Vai haver pressões, lucros astronómicos e tentativas de atropelo. Mais: o cenário político global, aproveitado por charlatães e movimentos populistas que surfam o medo e a confusão, ajuda à disseminação de informação falsa que assusta as pessoas e polariza as comunidades. Em Portugal e no mundo, há quem manipule franjas descontentes contra as instituições, contra a comunicação social e contra a política, neste caso contra as vacinas, quando o mais essencial ao momento é confiança e colaboração. Felizmente, também há cada vez mais quem se mova por uma defesa implacável do conhecimento e da verdade. Note-se que, curiosamente, não são as grupetas de autointitulados Pela Verdade. Mas avancemos. A tão esperada vacinação já arrancou – a tempo, em segurança e sem surpresas – e assim continuará, esperemos. Com vigilância, rigor, organização e humanismo da parte de todos. Mãos à obra.
A bazuca financeira. Diante de uma crise económica que, ao que tudo indica, desabará ainda com mais força em 2021, a União Europeia levou a sério o maior desafio coletivo desde a Segunda Guerra Mundial e deu uma resposta comum à crise da covid-19. Com todas as críticas a tecer à coordenação europeia ao longo da pandemia, a partilha de informação científica, a aquisição conjunta das vacinas e, no plano económico, a resposta do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia, do Eurogrupo e do Banco Europeu de Investimento, são uma mobilização inédita em defesa do projeto europeu, e dos cidadãos europeus, como um todo. O Fundo de Recuperação para as economias europeias (€750 mil milhões), financiado pela emissão de dívida comum, é fruto de negociações árduas e pode ter um papel fundamental na salvação de uma Europa comunitária a quem muita gente anunciava o fim. Agora, falta a prática: o disparo da bazuca virá e caberá a todos os organismos envolvidos, e em particular aos governos e instituições nacionais, garantir que o montante histórico é aplicado com estratégia e transparência, em defesa dos cidadãos, das sociedades e dos valores europeus. A canalização destes recursos para áreas fundamentais de recuperação (e transição para modelos económicos, sociais e ambientais mais justos e sustentáveis) dependerá do rigor, do trabalho, da inteligência e da seriedade de governos locais, empresas, instituições e sociedade civil. Mais um enorme desafio.
Em suma, é, portanto, tempo de dizer bye-bye – ou talvez vade retro – a 2020. Ganhar coragem. A presente crise é, em toda a sua extensão, um período que ficará para a História como um ponto de viragem. Perante essa curva, cada um se deita na sua mota e se equilibra à sua maneira como num autódromo, conforme a sua consciência. Lengalengas à parte, é tempo de refletirmos sobre que papel queremos, cada um de nós, ter neste momento em que a cooperação, a verdade e o humanismo são o único caminho da luz. Coragem.
E bom Ano Novo.