Dia 66
O antepasto foi demasiado prolongado e o repasto deveras ansiado. Andámos a namorar, a ver quando seria, a pensar na coisa, a ansiar pela dita, a imaginar o menu, a adivinhar o acompanhamento… até que, finalmente, chegou o dia. 18 de maio. Fase 2 do desconfinamento, estão abertos os restaurantes: partida, largada, fugida para a reconquista de mais uma etapa da normalidade da vida perdida. Dias estranhos, estes, em que as coisas que sempre foram tão estupidamente banais são agora notícia.

Marcámos com antecedência e escolhemos o lugar de sempre, de um amigo de sempre, que faz da restauração a arte de receber fiéis comensais em sua casa. Despretensiosa, é uma tasca maravilha quase secreta, um poiso seguro algures ali no Centro Cultural de Vila Fria. Não lembra a ninguém, eu sei – e é mesmo essa a ideia. É só para quem sabe, só abre ao almoço, só com reserva. O nome da dita não podia ser mais a propósito: Sítio de Gente Feliz.
E, deus meu, que felizes fomos hoje a almoçar fora. Ahhh, as saudades que eu já tinha disto!
Somos portugueses. Grande parte da rotina dos nossos dias passa por aqui. Pela mesa, pela partilha entre amigos, por um bom petisco, por um copo de vinho e um brinde. Eu preciso do prazer da mesa como de amor, praia e rede móvel. A praia nem que seja para nadar já tinha reconquistado, o amor felizmente nunca me faltou, tal como a rede móvel… hoje foi o dia da patuscada.
O Miguel Gonçalves, como bom anfitrião que é, tinha a casa toda devidamente adaptada. Mesas ao ar livre, distâncias garantidas, chapéus de sol para todos, e aqueles detalhes que fazem a diferença: marcações personalizadas nas mesas, um Buena Vista Social Club a tocar na coluna e uma rede brasileira convidativa para quem quiser deitar-se a seguir para a digestão. Toda a equipa de viseira posta, mas a mostrar bem o sorriso aberto por baixo da proteção de segurança, desinfetantes à mão, cumprimentos só com os pés a metro e meio. Coronas, só geladas no frigorífico e daquelas engarrafada para beber.
O almoço estava delicioso – uma bela garrafa de vinho, pimentos de pádron, queijinho alentejano, pão saloio, ovos com míscaros, linguiça assada, bochechas de porco, batatas fritas caseiras, tranche de vitela grelhada, finalizado com um pudim abade de priscos e morangos. Mas, para ser verdadeiramente franca, mesmo que não estivesse, ia a saber-me na mesma a uma verdadeira festa de Babette. Foi a minha primeira refeição em quase liberdade, quando quase me esqueci do mundo lá fora que a Covid-19 virou do avesso.

Adiei uma reunião que tinha marcada no Teams, deixei para mais tarde meia dúzia de mails para responder. Mas, minha gente, desconfinar é preciso. Apoiar estes pequenos empresários também. Eles estão a dar tudo e precisam de nós e da nossa confiança: a restauração e o pequeno comércio têm um peso enorme no PIB nacional. E a nossa sanidade mental agradece. Hoje, em duas horas de almoço ganhei um mês de endorfinas e de carburante. Arrisquei muito? Não creio. E, se arrisquei, valeu a pena.
Nos próximos tempos, viver será a arte de aproveitar as abertas que os dias nos dão. O que vem de lá amanhã não sei, mas este repasto e a felicidade transbordante deste pequeno prazer já ninguém me tira.